terça-feira, 4 de setembro de 2012

O ataque de um lindo gato (ou Perigosa metodologia para destruir o adultocentrismo)



Tem um gato me avisando pra não escrever esse post! Ele sobe no computador, pisa nas teclas, já desligou o computador uma vez, e eu não tenho coragem de o trancar lá fora, de o colocar ao relento. Mas ele não me deixa escrever, ele fica me rondando, e eu não quero deixar de escrever, não agora!


Lá vem ele de novo... Está aqui, miando, sentado do meu lado! Acabei de derrubá-lo no chão, pulou no meu braço tentando subir de novo da mesa... Derrubei, ele caiu em pé, voltei a digitar e ele agora está debaixo da mesa.

Mas ele já vai voltar de novo, veio várias vezes... Por duas ou três vezes, ele foi arremessado e, ao invés de insistir mais uma vez (como agora fez de novo, está em meu colo, se esfregando nos meus braços), foi pro sofá...

Ai meu Deus, agora está quietinho no meu colo, ronronando! Ele é lindo, tem uma penugem no focinho e nas patas que parecem de filhote de felino selvagem. Lindo! Tá de olhos fechados! Acho que agora eu terei um pouco de paz e poderei escrever! Eu sabia que ele viria me atrapalhar quando ele vinha de novo em direção à mesa, e miava antes, comunicando uma insatisfação profunda com algo no ambiente que eu, das profundezas de minha limitada percepção humana, não estava presenciando. Mas agora dorme, ronrona, entre minhas mãos digitantes, sob elas, sobre meu colo, sob a mesa. Encostado na minha barriga.


Pode ser que uma vela ponha fogo em tudo, pode ser que haja queima de estoque, pode ser que um gato, ou um banco multinacional ponha fogo na rede elétrica de nosso QG, e o maior estoque de produtividade acadêmica da psicologia capixaba seja queimado, carbonização do que Morais chama de "time dos sonhos" (2012). Por isso, como eletricista que sou, gostaria de deixar um recado: tomem cuidado com gatos. Eles são fofinhos, seduzem, oferecem carinho, oferecem oportunidades de oferecer carinho, mas são territoriais, adoram impôr suas vontades, muitas vezes se tornam inconvenientes, na busca pela satisfação de alguma de suas necessidades básicas (atenção e carinho são duas delas), e ainda podem colocar a sua rede elétrica em risco, além subverter o princípio sagrado da natureza: a propriedade privada da energia.


Quando Marx fala da extração da força de trabalho, através do processo de trabalho tal como ele ocorre na particularidade da exploração alienadora capitalista (aquela que gera a "mais valia", que é a libido econômica em função da qual somos ensinados a desejar, libidinosamente, o consumo e a comercialização da satisfação de todas as nossas necessidades básicas, lúdicas ou supérfluas), ele está falando de um processo no qual a energia humana se torna propriedade privada. É energia do corpo, isso que valoriza a natureza através do trabalho, e que permite a produção de mais valia. É através do trabalho do corpo, investindo energia em algo, que o homem transforma ao mundo e a si mesmo, transforma à natureza e também ao transformador da natureza (que é uma parte da natureza que adquiriu a capacidade de transformá-la, de transformar a si própria). O homem é a natureza inventando um jeito novo de se transformar. Nem bom nem mau, um jeito novo. Deu curto circuito?

Tem humanos lá fora. Ouço vozes. Gritam por uma Ester... Meu Deus, quem seria Ester? Fico sobressaltado, e acho que transmito isso pro gato, que acordou. Mas continua quieto, só mexe a cabeça (o que me deixa mais sobressaltado, apesar de achar que ele está se acalmando). Um mosquito me pica o rosto, um percevejo verde caminha sobre a mesa. Outro mosquito zune em meu ouvido esquerdo, e na verdade eles já estão me picando as pernas há muito tempo, imagino que estejam também se deliciando no gato. Medo de que os mosquitos acordem o gato, o computador e os ventiladores fazem uma sinfonia eletrônica ensurdecedora, tanto que a gente se ensurdece dela. Parece que está silêncioso aqui, mas se eu desligar cada uma dessas coisas, eu vou perceber o som alto que estavam fazendo.

Minhas mãos no teclado estão fazendo barulho. Mais cedo cogitei que talvez fosse o som de meus dedos no teclado, o motivo de o gato estar subindo tanto na mesa, passando sobre o teclado, parando na minha frente, tirando minha visão da tela. Ou talvez fosse alguma presença sobrenatural, que eu não conseguiria ver com minha percepção humana, cética, viciada em materialismos e insensível às outras dimensões. Que por sua vez, os sentidos dos gatos (muito mais intuitivos do que nós), podem captar. Eu não percebo o que o faz miar, subir na mesa e, quando insistentemente impedido, ainda assim procurar um lugar mais alto, no sofá ou na cômoda. Transformo tal motivo em uma explicação materialista ilusória, como o som de teclas, o movimento de dedos. Talvez meu materialismo seja a visão limitada, cega e burra de uma outra realidade, que o materialismo me esconde. Uma realidade que os gatos, muito mais inocentes e espertos, conseguem entender. Ou talvez minha crença na intuição felina, e em sua percepção feiticeira, fosse uma visão limitada, cega e burra da verdadeira realidade materialista, que o misticismo me esconderia. Duas hipóteses, tudo é possível, uma questão de fé?

Com fé na teoria mística, eu poderia acreditar que o motivo de o gato pular sobre a mesa e parecer tentar me atrapalhar no uso do computador, era uma mensagem? Um aviso para eu não escrever esse post? Mas eu tô escrevendo! E se eu continuar escrevendo, estou desafiando a teoria mística? Posso ainda deixar de postar, preciso apertar um botão laranja para ter de vez rompido com o misticismo e feito mais uma aposta no materialismo, mas essa hipótese está colocada apenas para mim, enquanto escrevo. Se você está lendo isso, é porque já decidi.

O problema de fazer gatos não é o roubo de energia, e sim os riscos de acidente que as ligações clandestinas causam. Se você tem competência técnica pra roubar sem oferecer risco à integridade da vida humana, faça a ligação, não obedeça às represas da propriedade privada.

Por favor, só não se esqueça que, no capitalismo, a mais valia é roubada da propriedade privada de quem trabalha, não pra eliminar de vez a propriedade privada nesta relação, mas pelo contrário, pra virar propriedade privada de quem a rouba, através da sua forma lucro. Não há poética pós moderna que justifique esse tipo de gato. A exploração capitalista é uma ligação clandestina por nós indesejada, que não pode oferecer nenhum tipo de via rumo a liberdade. No circuito metabólico do capital, não há via nenhuma com abertura de fato à liberdade. Há, isso sim, vias metabólicas análogas ao exercício da liberdade, que confundem certas moléculas de libertação, e as alienam da sua função bioquímica. O metabolismo do capital promete caminhos alternativos que não possuem, em termos bioquímicos, nenhuma eficácia. O metabolismo do capital é uma rede sem chance de saída, sem chance de qualquer ruptura de dentro pra fora. De dentro pra fora, só há chance de ser cooptado e integrado ao sociometabolismo do sistema, virar engrenagem de sua manutenção. Não é nenhuma privação de liberdade, proibir esse complexo projeto metabólico (civilização capitalista) de operar neste organismo (sociedade humana). É a própria estrutura metabólica que deve ser cortada. Sistema do Capital: eis um gato que oferece risco, sinal de mau presságio.

Gatos, apenas quando forem sinal de libertação. Libertar quem quer que seja da privação de acesso à energia. Toda energia é de todas e todos nós. Inclusive a energia de transformar, então que o mundo inteiro tenha a oportunidade de sair deste circuito atual e construir um circuito novo, fundado nas energias de transformar, que desde quando éramos crianças foram em nós caladas. Crianças privadas do direito de amar, de saber como amar.

Chega de silêncio e segredo sobre o que é a vida. A criança não deve ser privada por adultos, do acesso ao que a humanidade inventou, só é preciso ter o cuidado de dar esse acesso considerando a condição atual dessa humanidade, o quanto ela está preparada pra respeitar e suportar crianças que tenham acesso a tudo o que ela inventou. Mais respeitar do que suportar, pra não dar à humanidade o direito de ser intransigente com as crianças que questionam a humanidade. Esse é um direito que não tem legitimidade nenhuma, nem nunca teve nem nunca terá. Isso nem é um direito, é um abuso. Essa torção nas relações de saber entre adultos e crianças, que estamos aqui propondo, é um projeto de transição baseado na mudança de programação metabólica. Projeto de transição, mas sem os meio-termos reformistas. É roubar a energia revolucionária que roubaram de nós, e fazer com ela crianças implicantes, questionadoras, artistas, cientistas, livres, maravilhosas.

Um novo projeto de infância, e um outro projeto de adultos que vão lidar com essa nova infância. Dois novos projetos que não podem funcionar separados, que dependem um do outro pra obter sucesso, e dependem de um terceiro componente, do componente que os forma: a luta antiadultocentrista.

O adultocentrismo tem duas faces principais, uma é a deformação da relação entre o adulto e a criança (tratada como ainda não adulta), e outra é a deformação da relação entre adultos idosos e não idosos (sendo os primeiros vistos como uma versão mais endurecida ou madura demais, apodrecida, dos segundos). A segunda face, que muitos problemas nos trás e que deve ser combatida, pode gerar a deslegitimação das falas tanto de um quanto do outro subgrupo de adultos. Mas a face do adultocentrismo que quisemos, por ora, nos deter neste texto, é a que fala das crianças, de quem se engendra, se torna ser humano, sobre esse substrato rico construído pela experiência acumulada dos idosos (que podem ou não saber utilizá-las), e de gerações e gerações passadas e presentes. Precisamos, de maneira protetiva por enquanto, permitir aos corpos das crianças o acesso à verdade. Bastarão algumas gerações dedicadas a essa transformação, a essa liberdade, e as crianças estarão cada vez mais capazes de decidir por elas próprias o que fazer com esse conhecimento que a gente inventa. O ser humano, que transforma o mundo e se transforma, pode transformar essa parte do mundo e de si mesmo que é a relação entre adultos e crianças? Quando falo o ser humano, não estou falando apenas de adultos, mas também de crianças. Durante TODO esse texto! A compreensão das crianças como tão humanas quanto o adultos, e portanto como tão legítimas quanto estes na construção dos projetos coletivos da humanidade, é um princípio metodológico primordial e inegociável da psicologia do artifício. Afinal, como pode haver qualquer democracia de fato se a vida das crianças ainda é decidida pelos adultos? Se ainda achamos que isso é natural e biológico?

Como podemos fazer psicologia, fazer revoluções moleculares, entender o ser humano como ser social, como podemos fazer ciência ou cartografia, se nós ainda naturalizamos a incapacidade de crianças exercerem a democracia? A capacidade de loucos, drogados e criminosos exercerem a democracia? Como decidir que a liberdade individual não é um critério digno, e que só os critérios científicos e/ou filosóficos, como os jurídicos, os religiosos e os biomédicos, (no final das contas, todos tendendo a se consolidarem como critérios morais) podem contar na construção democrática de uma opinião da sociedade? Claro que isso não implica em decidir que os critérios científicos e/ou filosóficos são inimigos, e devem ser banidos. Muito pelo contrário, estou falando de escrever um projeto coletivo, ao invés de falar uma coisa da boca pra fora e ter outro projeto dentro do coração. Se dentro do coração, criança ainda é menos que adulto, e se numa analogia, pessoas infantilizáveis (por qualquer relação social) são inferiorizadas dentro desta mesma relação, qualquer discurso de liberdade dito da boca pra fora é natimorto. A VITÓRIA SOBRE O ADULTOCENTRISMO É A PRIMEIRA DAS LIBERDADES!!!!!!!

Mas isso não implica (e preciso dizer logo e concluir, antes que o gato acorde) que tenhamos um projeto de imediata abolição das mediações entre as crianças e a verdade. Não mesmo! Afinal, a psicologia do artifício é vigotskiana, e sabemos que todo ser humano precisa de uma zona de mediação social com outros seres humanos mais rodados, pra sentir em seu corpo aquilo que já marcou o corpo desses outros seres humanos, nas suas andanças por aí. E além disso, não ignoramos a história, sabemos que a condição atual da humanidade é tão grave, que a ruptura com o adultocentrismo pede, ainda assim, um projeto de transição, que considere as determinações objetivas (e consequentemente, as subjetivas) de nossas atuais circunstâncias. Neste projeto de transição, repito pra terminar, duas coisas precisam ser cuidadas com atenção redobrada: a segurança de que as crianças terão acesso à verdade, inclusive às suas verdades, de poder compreender seus corpos, sua sexualidade, sua tribo, sua comunidade, seu chão, seu território, seu mundo, sua história, sua tecnologia, sua cultura, sua arte, seu lazer e seu prazer; e a segurança de que todo esse acesso será oferecido considerando a forma como os adultos de hoje foram tratados, quando crianças, em relação a todas essas verdades. Afinal, toda criança tem também suas andanças, e Vigotski não ignorou em momento algum essa sutil verdade. Se há hoje adultos que não sabem lidar com crianças tão livres, precisamos enfatizar para estas crianças o acesso a verdades que as tornem aptas a se defender de adultos que as vêem como ameaças (e também aptas a se defender de adultos que a vêem como frágeis e usáveis, principalmente em campos hoje oficialmente ocultados às crianças, como o da sexualidade e o da política). Essa é a perigosa mensagem que a psicologia do artifício tem a oferecer para todas e todos vocês. Isso pode destruir um sistema social inteiro, por isso tenho que pensar duas ou três vezes antes de apertar neste botão laranja.

Mas vocês, que estão lendo isso, sabem muito bem que eu cliquei sem pensar duas vezes!

beijinhos de maracujá!

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