quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Sobre a polêmica questão da intolerância religiosa (ou "pequena contribuição sobre a laicidade - parte I")!



Escrevo este texto, antes de mais nada, para discordar de uma tese polêmica que muitas vezes é mecanicamente repetida pela esquerda que defende a laicidade:

CRISTÃS E CRISTÃOS NÃO SOFREM OPRESSÃO POR SUA ORIENTAÇÃO RELIGIOSA!

Provocativamente, eu coloco aqui orientação religiosa, quero deixar registrado que não acho que as pessoas "escolhem" suas religiões. Entendo a religiosidade como um fenômeno cultural coletivo, e portanto por mais que haja ativa participação da pessoa nesta determinação, esta determinação é social, grupal, devida às circunstâncias históricas.

Por isso mesmo sou um defensor intransigente da liberdade religiosa. E a única forma coerente de defender a liberdade religiosa é afirmando a necessidade da laicidade. Quero logo mais falar um pouco sobre ela. De qualquer forma deixo registrado de que do início ao fim deste texto, é sobre laicidade que se fala, e acho que precisamos nos aprofundar mais neste complexo tema, para elaborá-lo, formulá-lo e adjetivá-lo. Quando falo em adjetivar, falo em disputar sentidos, para construir uma concepção de laicidade coerente com a construção de uma sociedade socialista. Toda palavra pode ter diversos sentidos, e a liberdade burguesa liberal, por exemplo, é diferente da liberdade de quem defende um socialismo livre. Assim também a laicidade e a liberdade religiosa devem ser adjetivadas.


Adjetivando a liberdade religiosa:


Toda religião, como fenômeno cultural coletivo, deve ser livremente exercida. A espiritualidade a meu ver é um fenômeno psicológico intrínseco a todo ser humano que busca explicar a sua própria existência e a relação disso com toda a humanidade, com todo o planeta e com todo o universo. A natureza é complexa, e a consciência humana, sempre limitada, incapaz de compreender toda a natureza, apreende apenas parte dessa complexidade, e a espiritualidade é uma forma dessa apreensão. Tal forma exerce um grande poder sobre os comportamentos individuais e coletivos da humanidade. Ainda mais porque a prática humana de criar instituições (ou seja, grupos e organizações com funcões específicas e funcionamentos específicos) acaba se cruzando com a diversidade de espiritualidades individuais. A partir daí, a humanidade começa a criar instituições que coletivizam e buscam homogeneizar mais ou menos as espiritualidades individuais. Essas são as religiões.

Não vou de forma alguma enfrentar essa tendência humana de institucionalizar sua espiritualidade, essa é uma necessidade que muitas parcelas da humanidade, nos quatro cantos do mundo, buscaram para lidar com a realidade, e isso é protetivo pra muita gente, em muitos casos. O problema é que o que é protetivo pode também ser opressivo, e aqui cabe uma demarcação importante, na nossa adjetivação da liberdade religiosa.

A cultura humana deve ser protegida de cerceamentos de liberdade, de opressões à livre expressão cultural, por isso defender a liberdade religiosa. Mas quando as instituições religiosas praticam, reproduzem ou induzem á reprodução de opressões, isso transgride, a meu ver, os limites da liberdade religiosa. Não defendo que qualquer religião tenha liberdade de oprimir, liberdade de retirar liberdades individuais ou coletivas. Inclusive liberdades de outras religiões. E aqui coloco um asterisco na ideia de atritos interreligiosos, também voltarei a ela logo mais.

Ainda na adjetivação da intolerãncia religiosa, acho que as religiões precisam todas construir entre si e com toda a humanidade um pacto de respeito mútuo, não só entre religiões, mas também com cada pessoa individualmente, independente de sua vinculação ou não com religiões. Esse pacto deve ter como objetivo a busca para aumentar a capacidade protetiva das instituições religiosas, e simultaneamente diminuir sua capacidade opressiva.



Dito de outra forma, uma pessoa pode se sentir muito bem com uma religião, e conseguir elaborar muitas de suas questões, mas se as pessoas sofrem por ter que seguir as regras de uma religião, isso é um sinal de que algo TALVEZ esteja errado. Mas ainda acho que cabe, se a pessoa opta por compôr uma coletividade religiosa, ela está subscrevendo suas regras. Coloquei aquele talvez em caixa alta porque, entre outros motivos, não acho que ninguém simplesmente opte por aderir a uma religião. Como disse no início do texto, acredito que se trata SEMPRE de um processo histórico de orientação religiosa. Na vida de cada indivíduo se reproduz uma versão específica do processo histórico de toda a humanidade, na busca por entender sua relação com a natureza.

Mas isso pode ser ainda mais grave: a instituição religiosa pode querer impor um estilo de vida para pessoas de outras religiões ou de nenhuma religião. Isso inclusive fere o direito dessas pessoas, de outras religiões ou de religião nenhuma, de viverem sua própria espiritualidade. Aqui há indiscutivelmente um ato de exercício da capacidade opressiva da instituição religiosa. O direito de fazer isso para mim não é direito de liberdade religiosa, é direito de oprimir em nome da religião.

Dito ainda de uma terceira forma: acho que qualquer religião que quer exercer livremente suas práticas, não pode ter em seu repertório práticas que ferem a liberdade alheia. Eu não tenho o direito de intervir na religião de ninguém, ela diz respeito apenas às pessoas daquela religião (auto-organização religiosa). Mas eu defendo que acabe o direito de auto-organização religiosa assim que essa hipotética religião comece a intervir na auto-organização de outras religiões ou em quaisquer outro tipos de liberdade externas a ela (como querer impor através do Estado suas convicções religiosas particulares para toda a população de um país, por exemplo). Não podemos impedir a intervenção em uma religião que intervém na privacidade ou na coletividade alheia, pois isso seria permitir a ela super-poderes sobre a vida de pessoas e coletividades. Isso seria (não sei se é o melhor termo mas por enquanto o usarei) libertinagem religiosa. Defendo que separemos a liberdade religiosa da libertinagem religiosa (ou direito de oprimir).

Dito que defendo que religião nenhuma pode ter o direito de oprimir, quero falar só mais um pouquiho sobre a auto-organização religiosa. Se a religião é de fato uma construção histórica coletiva e cultural, não é um fenômeno imutável. Por mais que as religiões se entendam como eternas manifestações da vontade de Deus ou Deuses sobre a terra, é nítido pra qualquer análise inteligente que TODAS AS RELIGIÕES MUDAM AO PASSAR DO TEMPO, e acredito que isso seja graças ao fato de serem expressões humanas, através de ações humanas, do que grupos de seres humanos acreditam ser vontade divina, de nível espiritual. Portanto, há política na disputa dos rumos futuros da religião. Toda religião muda, para que rumo mudará, isso depende da correlação de forças dentro das religiões.

Por exemplo, se uma pessoa LGBT quer o direito de vivenciar sua sexualidade sendo de uma religião que não o permite para seus membros, cabe a ela como membra desta instituição fazer a disputa interna, e no tempo histórico que for possível, um movimento coletivamente organizado poderá ou não efetuar tais mudanças. Nenhuma pessoa sozinha transforma uma religião ou qualquer outra instituição sem um movimento coletivamente organizado que lhe dê sustentação, é sempre a luta coletiva que transforma a história, ainda mais se o que se deseja são transformações progressistas.

Já no caso de uma pessoa LGBT que sobre opressão, pela vivência que faz ou pretende fazer da sua sexualidade, sem ser membra da instituição que a oprime, isso precisa ser combatido, e aí não é apenas um movimento auto-organizado (dentro da religião) que tem o direito de travar tal combate, mas todos os setores da sociedade que discordam de tal opressão. Claro que com isso, a disputa interna, ou seja, a auto-organização dentro da religião, ajuda os movimentos extra-religiosos nesta luta progressista. Do mesmo jeito, o caso do parágrafo anterior, uma mudança interna, redesenho na doutrina e redesenho cultural, tem mais chances de se efetivar quando há movimentos fortemente organizados fora da religião, no seio da sociedade como um todo, conquistando avanços e transformado toda a sociedade.



Com isso insisto: movimentos progressistas não devem combater as religiões, nem ferir sua liberdade religiosa, mas defendê-la e apoiar os movimentos internos a essas instituições religiosas que têm posições progressistas.

Gostaria aqui de declarar meu respeito particular pela existência de um movimento chamado "Católicas Pelo Direito de Decidir". Organizações assim me fazem ter esperança na humanidade. São feministas católicas que entendem a laicidade e a reivindicam. A partir disso, defendem a legalização do aborto, sabendo que isso não fere seus princípios religiosos, apenas limita a libertinagem da religião delas. Esse parágrafo é dedicado a este movimento e ao amor pela humanidade que elas fazem aumentar em mim. O cristianismo radical que eu sempre admirei me parece estar por trás de movimentos como este.



Agora sobre a questão da suposta "não existência de intolerância religiosa ao cristianismo". A gente se deixa levar por uma lógica simplista: como o cristianismo foi historicamente uma religião opressora (tanto a povos colonizados, a indívenas e negrxs, a LGBT's, a mulheres, etc.) e ainda é uma religião opressora, logo não há opressão a cristãs e cristãos. Eu não concordo. Até mesmo as versões mais conservadoras, reacionárias e fundamentalistas (pra chamar assim) de cristianismo podem sofrer opressão. A opressão não é sempre igual em diferentes tipos de opressão, o mecanismo do "oprimir"/"sofrer opressão" tem traços comuns que fazem de todas elas opressões, mas há particularidades que fazem delas opressões diferentes, e até mesmo pela resistência às opressões causadas pela hegemonia cristã, foram criadas estratégias opressoras contra o cristianismo. As pessoas se sentem atacadas por sua vivência espiritual e por sua vinculação a determinada instituição religiosa, isso é sofrer opressão. Faço essa defesa. Inclusive acho ruim que esse fenômeno ocorra, porque no âmbito da disputa de consciência, isso tende a gerar um engessamento das posições conservadoras, diante da sensação de estar sofrendo ataque emerge a necessidade de defesa, e essa posição defensiva muitas vezes se manifesta através de um fechamento às ideias progressistas, como se elas fossem em essência opressoras contra o cristianismo. Precisamos fazer dos movimentos progressistas de combate às opressões e à exploração capitalista movimentos que não pratiquem nenhum tipo de intolerância religiosa. A laicidade precisa permear todos os nossos movimentos.

No entanto, é preciso fazer algumas distinções, porque eu também não concordo completamente com a versão de alguns setores cristãos sobre a intolerância religiosa sofrida pelo cristianismo.

Em primeiro lugar, insisto, o cristianismo é em muitos países e entre eles no Brasil, religião hegemônica, e pratica opressões MUITO MAIS do que sofre. Não acho justo cristãxs se vitimizarem pela intolerância sofrida e não reconhecer a intolerância praticada pelo cristianismo, seja religiosa ou de quaisquer outros tipos. Acho que está colocado para o cristianismo um desafio de combater as práticas opressivas dentro do próprio cristianismo, mesmo porque elas também têm alimentado parte das opressões praticadas contra cristãxs.

E também acho importante o cristianismo perceber que, quando tratamos de intolerância religiosa, o exemplo mais nítido da existência dessa opressão NÃO É a sofrida pelo cristianismo. As religiões de matriz africana por exemplo, são muito mais oprimidas do que as cristãs. O racismo se acumula na intolerância religiosa. O cristianismo tem uma história que não pode ser apagada, é uma religião que nasceu antiimperialista e combatida pelo império, mas depois se deixou cooptar pelo império e virou a religião oficial do império romano. Viveu todas as suas transformações junto com a história da Europa e depois foi levada para as colônias no processo de colonização. Foi assim que o cristianismo chegou ao Brasil, como ideologia que justificava assassinatos, escravidão, estupros, roubos de terras, torturas e todo tipo de atrocidades. Um cristianismo que não admite essas práticas, e que não luta pra combater as opressões que, hoje, ainda mantém essas práticas do passado vivas como práticas do presente, não pode dizer que apenas sofre intolerância religiosa. Em resumo: 1) o cristianismo mais pratica opressões do que sofre; 2) outras religiões sofrem mais opressões no Brasil do que o cristianismo. Essas duas coisas precisam ser admitidas pelo cristianismo que se quer laico e ecumênico.

Há também uma terceira questão, relativa às opressões intracristãs, entre as várias denominações, e também entre o catolicismo e os protestantismos, mas não entrarei nestas nuances aqui. Não hoje.

Adjerivando a laicidade:



Quero terminar este texto iniciando um esboço de adjetivação da laicidade. Como é de costume no blog artifício socialista, peço que opinem para que eu possa aperfeiçoar as ideias aqui apresentadas. Peço principalmente opiniões de pessoas cristãs, já que há um foco neste texto, mas não apenas. De qualquer forma ressalto: quero abrir um dialogo com as várias formas de cristianismo progressista que hoje existem, e se puder ajudar a fortalecê-los, e também a fazer com que novas formas de cristianismo progressita surjam, melhor ainda. Mas não é apenas o cristianismo que requer setores progressistas na sua auto-organização, apenas se trata da religiosidade hegemônica no Brasil e na América Latina.

Laicidade diz respeito a uma relação mútua de respeito e não interferência entre Estado e religião. Para nós, que queremos o fim do Estado, uma questão colocada é se queremos o fim da religião também. Numa sociedade futura, em que não haja mais Estado, haverá espaço para espiritualidades institucionalizadas? Eu não tenho opinião profundamente formada sobre este ponto, e isso não cabe a apenas uma pessoa decidir, já que um processo revolucionário cabe a toda a humanidade e diz respeito á posição de uma nova maioria que se instala, da maioria ampla da sociedade. Mas defendo a opinião de que as religiões devem ser reformadas por seus membros e, onde for necessário, diretamente por toda a sociedade. Onde não for necessário intervenção direta da sociedade, a própria transformação radical de tudo na sociedade estará dialeticamente e indiretamente influenciando as disputas internas das religiões. De qualquer forma, acho que a forma libertária de transformação das religiões, no objetivo estratégico de aumentar suas capacidades protetivas e diminuir suas capacidades opressivas se dará através dessas formas de luta. Portanto aposto que em uma sociedade sem estado, teremos religiões como patrimônios culturais da humanidade, em relação ecumênica, religiões que não tenham características estatais.

No entanto a origem da religião e a origem do estado têm um processo comum, e ele é o da exploração humana pautada na propriedade privada. E no presente, onde existe o estado, a laicidade é um valor fundamental. Nasce a laicidade da necessidade de combater a vinculação das religiões dominantes com o estado. A ideia é justamente de que é possível combater a opressão praticada por religiões sem combater as religiões e o direito a praticá-las.

A laicidade é como já disse mútua, ou seja, tem mão dupla. Laicidade não é apenas a religião não podendo interferir no estado, mas também o estado não podendo interferir na religião. Nem pode uma doutrina religiosa ser imposta ao estado, nem pode o estado impedir a religiosidade de se expressar, seja ela qual for, nem impôr à religião valores externos. A religião se auto-organiza, enquanto não estiver oprimindo. E ponto.

Ouvi de um amigo certa vez, sobre a laicidade, que o cristianismo feriu a laicidade quando virou a religião oficial do império romano, e que para isso acontecer, tanto o império teve que estar já muito degenerado, pra praticar a cooptação de uma religião minoritária (claro que já estava, afinal, já tinha sua religião oficial antes, apenas a trocou pelo cristianismo), quanto o cristianismo também teria que estar profundamente degenerado, para aceitar ser cooptado e se tornar religião estatal. Toda vez que uma religião quer se impôr sobre uma política pública universal, ao invés de ser uma religião entre outras, é essa degeneração que está colocada.



Em outro texto pretendo falar sobre a relação entre as lutas antimanicomial/antiproibicionista e a laicidade. Adianto desde já que o estado a serviço de formas de tratamento que objetivam a converter pessoas em nome da saúde, não são práticas com finalidade de libertar pessoas através do contato de Deus. É gente de carne e osso que ganha dinheiro de acordo com o número de fiéis, e que faz uso do sofrimento das pessoas para aumentar seu número de fiéis e engordar seus bolsos. No cristianismo isso é condenável, pelo que eu me lembre. Defendo que um tratamento laico e antimanicomial deva considerar, onviamente, a religiosidade de cada pessoa, mas a instituição de tratamento financiada pelo estado não pode ser vinculada a nenhuma religião, afinal, a religião que em alguns casos pode ser protetiva e ajudar na saúde da pessoa, pra outros casos pode estar sendo imposta e prejudicar o tratamento. Mas esse é assunto pra outra história.

Espero ter contribuído para o debate da laicidade, e espero que as pessoas, mesmo que discordando do conteúdo, aceitem de coração aberto a necessidade de ampliar esse debate. Minha iniciativa tem esse objetivo, e o nosso tempo pede que entremos urgentemente e cada vez mais nessas questões. Religião se discute SIM!

beijinhos de maracujá!