sábado, 4 de fevereiro de 2012

Psicologia em Movimento é a velha nova ameaça...

“Quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem” – Rosa Luxemburgo


PARTE I -  O autor apresenta os conceitos de conforto, incômodo, acomodação e movimento, e tenta fazer com que eles fiquem claros para só então prosseguir

Essa semana um camarada meu disse que, apesar de suas desilusões com o sistema, apesar de suas desilusões com a mudança do sistema, apesar de achar que não dá pra fazer nada pra mudar, ele vê importância em uma intervenção: incomodar...

A palavra ficou na minha cabeça: é isso que podemos fazer pra mudar as coisas? Podemos incomodar? E sem dúvida o incômodo é importante... Então é sobre ele que eu vou falar agora...

As pessoas estão muito mais incomodadas do que a gente imagina... Por todo canto as pessoas sentem na pele as contradições da vida toda... Tudo na vida tá impregnado, pregnante, grávido de contradições... E o fato de a gente sentir na pele essas contradições, é algo que causa incômodo... Muita gente tá incomodada e a gente acha que não... A gente acha que essas pessoas estão confortáveis... Mas será que não estão?

Então eu queria propôr uma diferenciação: vamos fazer um acordo? Vamos acordar que conforto e acomodação são situações diferentes? O que me incomoda não me deixa confortável, mas eu posso me acomodar com um incômodo, correto? Percebem que pode ter muita gente que a gente tá achando que tá confortável diante das contradições, mas que na verdade tá só acomodada, mas impregnada de incômodo com as contradições?

Pois é... Eu achei que todo mundo achasse normal, que as pessoas estivessem confortáveis com o machismo nos trotes, e vi tanta gente compartilhando uma imagem que eu fiz sobre esse assunto, no tal do facebook, que aí eu me perguntei: se tanta gente tá compartilhando isso, é sinal de que as pessoas estão incomodadas, não estão confortáveis com isso, a crítica a isso tem aceitação mas, porque não fazem ser diferente, então?

Fazer ser diferente: é isso o nosso desafio! Há o conforto, e há o desconforto, o incômodo... Mas há o incômodo que se move na cadeira e não levanta, o incômodo que não sai da acomodação... E há o incômodo que se levanta da cadeira, que deixa de se sustentar na situação contraditória e se move pra fazer diferente... Posso chamar isso de movimento?

Assim sendo, eu gostaria de compartilhar com vocês algumas coisas da minha vida pessoal, e que são ao mesmo tempo da vida pessoal de muita gente, e em outro sentido, da vida pessoal de todo ser humano que habita a face desta Terra... Pode ser?

PARTE II - O autor fala de sua futura profissão, de sua crise com a mesma, e da superação desta, no sentido simultâneamente afirmativo e negativo que a palavra "superação" possiu dentro da tradição marxista

Eu sou estudante de psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo e sempre achei que o mundo não tava bom e que precisava ser mudado... Quando eu era católico, aprendi com uns católicos metidos a comunistas que o reino dos céus precisava ser construído aqui agora, um reino de justiça e paz na Terra, sem desigualdades, para que pudéssemos alcançar esse reino de justiça e paz no céu... Venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na Terra como no céu... Assim diz a versão católica dessa oração... Não há fé sem obras... Mas eu ainda nem era comunista, só era um católico sob influência de católicos metidos a comunistas... Depois eu acabei virando estudante de psicologia... E sempre ouvia falar da necessidade de desconstruir... Antropólogos e Esquizoanalistas me convenceram da necessidade de desconstruir, eu até conheci bem de perto o cabo do martelo iconoclasta nietzschiano, aprendi a demolir ídolos... Mas ainda tinha resquícios e manias de católico, e achava que não bastava desconstruir, precisava construir alguma coisa, que fosse um reino de justiça e paz na terra, sei lá... Mas precisava desconstruir pra reconstruir algo... Nietzsche, os esquizoanalistas e boa parte dos antropólogos se frustrariam comigo, afinal, quanta moral cristã! Mas eu não sabia porque era, mas algo na contradição entre meu nietzshiano-esquizoanalismo e o meu comunisto-cristianismo me fazia sentir a falta de alguma coisa... E também a presença indesejada de alguma outra coisa... Era como se tivesse algo mais me incomodando...

Eu tive uma crise no meu quarto período de curso... Larguei disciplinas do curso, larguei pessoas da minha vida, larguei certas idéias que estavam estranhas pra mim... Mas não sabia o que me incomodava, nem do que sentia falta... Mas comecei a achar que minha futura profissão tinha um problema, e cheguei a - mesmo que apenas por frações de segundos - cogitar a possibilidade de largar meu curso de psicologia...

Era mais ou menos o seguinte: Eu comecei a perceber que meu curso tinha uma missão... Não era uma missão homogênea, que todo mundo ligado a essa profissão defende, pratica, aprende a defender e a praticar... Mas era sim uma missão hegemônica, que muita gente, a grande maioria ligada a essa profissão defende, pratica, aprende a defender ou a praticar... Uma missão que não era homogênea, mas era hegemônica... E qual era essa missão? Vou contar pra vocês...

A missão hegemônica de minha futura profissão era, e é, a de tentar confortar os incomodados, para que eles se acomodem... É fazer com que as pessoas se sintam felizes, do jeito que estão, apesar das contradições que incomodam... Que se acomodem a elas... Que se adaptem, que aprendam a lidar com cada situação, que aprendam a se adaptar a cada contradição, que aprendam a se acomodar pra ser feliz... Que tenham a autonomia de ser felizes apesar das contradições e a seguir suas vidas adiante, como se estivessem confortáveis, como se o incômodo não existisse...

Mas o incômodo existe, e minha profissão, para meu azar ou para minha sorte, não foi eficiente o suficiente pra me fazer me acomodar com esse meu incômodo... E eu percebi que essa missão, que esse projeto, era hegemônico, mas não homogêneo, na minha profissão... Ou seja, que poderia haver, e/ou que poderia ser formulado, outro projeto para esta profissão... Que eu poderia inventar, ou ajudar a inventar, uma outra missão... Uma missão contra-hegemônica...

Mas foi uma crise que durou muito tempo... Eu passei um ano e meio fazendo o quarto período... Um ano e meio de crise... E saí dela na vontade de construir esse projeto contra-hegemônico... Mas eu só expliquei qual é o projeto hegemônico, que já está sendo bem construído... Como eu vou colaborar na construção de um projeto que eu desconheço, ou que não sei explicar? Qual é o projeto contra-hegemônico? Assim sendo, me senti intimidado a tentar explicar sobre ele, vocês me permitem?

PARTE III - O autor apresenta aquilo que entende ser a raiz do projeto contra-hegemônico para a sua profissão, e fala sobre a importância da radicalidade

Psicologia Social é um nome que atrai militantes de esquerda que não são psicólogos ou estudantes de psicologia... Porque o problema da psicologia, alguns pensam, é o individualismo... Logo, se a psicologia abandona o indivíduo e estuda a sociedade, ela ajuda a fazer ser diferente, ela ajuda a transformar a sociedade... Portanto, a óbvia lógica nos diz que a Psicologia Social é o ramo da psicologia que vai ajudar a militância a avançar nas lutas... Ai, que ledo engano...

Não basta estudar o social... Eu posso estudar o social pra entender como ajudar o indivíduo a aprender a ser mais feliz nesse social, e uma boa parte deste ramo, psicologia social, tem esse projeto específico: aprender como a sociedade é pra adaptar os incomodados, pra que eles aprendam a se acomodar e, portanto, ser mais autônomos e mais felizes nessa sociedade, que a gente entendeu tão bem como funciona, psicologicamente... E por isso, essa missão tão nobre pede que publiquemos muitos artigos, coletemos muitos dados e façamos muitas pesquisas... Afinal é cientificamente comprovado que sociedades que estudam mais como se adaptar, se adaptam melhor... Se isso não é cientificamente comprovado, pode ser, basta achar alguém que te oriente e que seja especializado nessa área...

Não basta estudar o social... É preciso uma outra coisa... Era a coisa que eu sentia falta, e que acho que é a raiz do projeto contra-hegemônico que precisa ser construído para a minha profissão... O que me incomodava era esse projeto adaptativo, acomodativo, projeto que tenta convencer que autonomia, felicidade e conforto são "o que é possível fazer agora", ou seja: já que eu sozinho não posso mudar o mundo, posso fazer alguém ser feliz nele do jeito que ele é, porque pelo menos eu mudei um pouquinho... Mas se esse projeto adaptativo me incomodava, qual era o projeto contra-hegemônico que me fazia falta?

Muito simples: a missão contra-hegemônica para a minha profissão era, e é, ajudar as pessoas a transformarem seu incômodo em movimento... Ajudar as pessoas incomodadas com a cadeira das contradições a se levantarem do berço esplêndido do incômodo acomodado, e partirem para o incômodo em movimento, para o incômodo que transforma... A minha psicologia poderia estudar as pessoas pra perceber que nem todas as pessoas viveram assim, e que portanto, as pessoas que sozinhas não podem mudar o mundo, quando se juntam podem mudar o rumo de suas histórias... Eu estava em crise quando eu descobri que tinha gente pensando a psicologia assim, que tinha psicólogo cientista comprovando cientificamente que o ser humano escreve sua história junto com outros seres humanos, e que seres humanos juntos podem escrever sua própria história... Essa psicologia não transformaria os incômodos das pessoas em movimento, ela apenas ajudaria as pessoas a transformarem em movimento seus próprios incômodos... Ao invés da autonomia de se adaptar ao mundo, potencializariamos a autonomia de lutar pra transformar o mundo...

Ai, Anezio... Que arrogante... Você realmente tá achando que é Deus, né?

Pior que não... Quando eu era católico, eu lembro que Deus dizia que não havia fé sem obras e que deveríamos construir um reino de justiça e paz na terra, assim como no céu... Faz de conta que eu continuei respeitando Deus como respeitava quando era católico... Quero o lugar dele não... Quero só ser mais um ser humano que aprendeu que pode escrever a própria história, e que juntos podemos escrever a própria história... O nome disso não é psicologia social, é psicologia social radical...

Por que radical? Porque vai à raiz... A raiz do funcionamento da sociedade e do social como fenômeno psicológico é: a sociedade é feita pelos humanos, pela atividade dos humanos, pelas ferramentas das quais os humanos dispõem, pelos dispositivos artifíciais, pelos artifícios dos humanos... A raiz do fenômeno que a psicologia social estuda, a essência desse fenômeno, é essa: mais do que ser natural, a sociedade é uma natureza artificial, e portanto, podemos transformar... Qualquer psicologia que se contenta em adaptar indivíduos ou grupos à sociedade que incomoda, é uma psicologia carente de radicalidade... Radicalidade é fazer a psicologia pôr às pessoas a possibilidade de transformar incômodo em movimento... Esse é o nosso projeto contra-hegemônico, essa é a nossa missão radical! Nosso projeto é o nosso artifício, a nossa ferramenta, o nosso instrumento, o nosso dispositivo pra ajudar a transformar o mundo...

Eu não sou mais católico, não sei se esse nosso instrumento ajuda na construção do reino dos céus, mas com certeza ele nos arma para a luta transformadora aqui na terra...

beijinhos de maracujá!

dedicado à camarada Fabiane Sabadine, à CONEP, que talvez seja a minha maior ou segunda maior escola, e aos camaradas já formados, que foram do Barricadas Psicologia Curitiba, e que me ensinaram sem querer que Vigotski não é "um Piaget que enfatiza o fator social"!

Um comentário:

  1. ‎"Qualquer psicologia que se contenta em adaptar indivíduos ou grupos à sociedade que incomoda, é uma psicologia carente de radicalidade... Radicalidade é fazer a psicologia pôr às pessoas a possibilidade de transformar incômodo em moviment...o..." Zé, amei esse seu texto. Essa parte meio que condensa tudo o que amei no texto. E que meio que mexe comigo - no meu modo de enxergar a clínica: em perceber que, mtas vezes, as pessoas que atendemos - mesmo em clínica individual - nos fazem sair do lugar e que seus incômodos, jamais apenas seus, não podem ser silenciados. Ou acalmados. Não sei ainda como fazer isso que vc traz - ou talvez saiba, mas são passos delicados e sutis: volta e meia parece fácil cair na acomodação. Mas penso que vc nos aponta um incômodo. Vc nos lança um incômodo fundamental, que nos coloca em movimento enquanto psis.

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