quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Carta ao povo de Feu Rosa!


Serra, 15 de fevereiro de 2012


Eu sou morador de Feu Rosa e sou estudante de Psicologia da UFES. Não são duas coisas comuns de se encontrar ao mesmo tempo em uma mesma pessoa e, na boa, não foi porque eu fiz por merecer, nem porque eu sou melhor, nem porque eu batalhei por isso. É porque deveria ter vaga pra todo mundo e não tem, então só alguns são privilegiados, e eu não tenho orgulho de usufruir de algo que é privilégio de poucos.

Mas eu entrei lá na UFES, então vou usar isso não apenas em proveito próprio, mas para todas e todos que financiam aquela Universidade e que precisam dos conhecimentos e serviços que ela produz. Aquilo é de todas e todos, então todo deveria ter direito de usar. E já que eu tô tendo esse direito, então vou me colocar à disposição do que for para todas e todos, não é lógico, isso?

Lá eu participo do Centro Acadêmico, o CALPSI-UFES. É um grupo de estudantes de psicologia, que se juntam para pensar como o curso pode ser melhor pra quem estuda lá, e também pra quem não estuda lá. A gente sente na pele uma série de coisas, e por isso quer lutar pra mudá-las, e acaba querendo também mudar aquelas que a gente não sente na pele, mas sabe que outras pessoas sentem, e que a gente pode estar junto com essas outras pessoas. Afinal, a UFES não é só nossa, não é só de quem passou no vestibular, então o que aprendemos lá dentro não deve servir só pra gente lutar pelos nossos direitos de estudantes, e sim pelos de todas e todos.

Mas o que me incomoda demais, e que hoje conversando com um amigo, também de Feu Rosa, me fez querer desabafar em vocês, é que eu estudo na UFES só a 4 anos, frequento ela a no máximo 7 anos, e tó junto com outras pessoas de lá de dentro, unido e lutando organizado pra melhorar as coisas que eu e essas pessoas de lá de dentro achamos justo mudar. Mas porque é que eu não estou unido e lutando organizado com outras pessoas que, assim como eu, moram em Feu Rosa, estudam em Feu Rosa, trabalham em Feu Rosa, vivem em Feu Rosa, o bairro em que moro praticamente desde que nasci? Vou fazer vinte e quatro anos, e moro neste bairro há vinte e três. Mas eu não vejo as pessoas se juntando. Vejo no máximo umas duas dúzias de gatos pingados brigando pela associação de moradores, se acusando mutuamente, trocando de cargos e fazendo pouca diferença pra vida efetiva das pessoas que moram neste bairro. Será que todo mundo tá satisfeita e satisfeito em Feu Rosa? Será que lá tá tudo bem, tá tudo bom, tá tudo muito justo, belo e em paz?

Feu Rosa é um bairro grande, rico em criatividade, com muita gente artista, muita gente inovadora, muita gente inteligente. Mas infelizmente é também um bairro cheio de desigualdades: gente que vive com muito e gente que vive com nada. Gente que tem que ralar pra viver, e gente que faz aliança com corrupto pra manter privilégio. E tem gente que tá fora de Feu Rosa, lucrando em cima dessa gente toda daqui. E a minha pergunta é: porque é que o povo de Feu Rosa não se junta? Tá mesmo todo mundo satisfeito?

Não tá! Não tem satisfação! Não se trata de um povo "alienado", não é um povo que "acha que tá tudo bom" nem um povo que "não vê os problemas ao seu redor". Quem vive em Feu Rosa sabe, e é só observar pra constatar: as pessoas sabem que não está bom, sabem que tem gente em situação melhor, sabem que do jeito que está, tá errado, e sabem que tem como mudar (mesmo que achem muito difícil, o que de fato é!). As pessoas estão incomodadas. Elas estão MUITO incomodadas. Mas o problema é que esse incômodo ainda está acomodado, e o que falta é transformar esse incômodo em movimento.

Então estou escrevendo essa carta pra chamar todas as pessoas incomodadas de Feu Rosa a se movimentarem. Quero lançar um movimento pela construção de uma nova Feu Rosa. Não é uma chapa pra associação de moradores (nada contra, mas não acho que a vida do bairro se resuma a isso), nem se trata de uma nova sorveteria ou de uma nova igreja. Se trata apenas de a gente juntar quem não tá feliz com essa situação do jeito que tá, e quer se unir pra lutar por mudanças.

Se os nossos jovens, muitas vezes negros, morrem assassinados (seja por tiro da polícia ou de outros jovens negros), não dá pra gente continuar colocando a culpa no jovem que morreu, ou apenas culpando quem matou. Um sistema que leva as pessoas a viverem a vida assim, um sistema que transforma seres humanos em marginais, pessoas que devem se esconder, que devem ter vergonha da vida que levam, tem algo muito errado aí, que vai para além de nossos jovens. Se falta cultura, se falta lazer, se falta diversão e prazer pra gente. Se quando estamos andando na rua, é normal que a polícia nos pare, nos ponha na parede, nos trate como bandidos, nos constranja (com ou sem truculência, pouco importa!) baseada na cor da nossa pele, ou no modo como nos vestimos, e isso nunca acontece com quem mora na Ilha do Frade. Se a gente se acostumou, mesmo que ainda sentindo humilhação, a ouvir piadas preconceituosas contra nosso bairro e quem mora nele. Se é normal que a natureza seja destruída nos arredores de nossa terra, e tenha gente lucrando com isso, e que quando um evento cultural aparece por aqui, o jornal diz que foi "próximo a Jacaraípe", mas quando uma morte é não tão perto daqui, o mesmo jornal diz que foi "nas imediações de Feu Rosa". Se apesar disso tudo, as pessoas ainda não se uniram pra lutar por mudanças, então que tal nos unirmos agora?

Não dá pra gente ficar só cuidando do nosso próprio salário, do nosso próprio quintal e do nosso próprio arroz com feijão. Hoje a gente tem, e ignora que haja quem não tem. E se amanhã tomam isso da gente, quem é que vai lutar por nós? Feu Rosa não é uma selva, não é a terra do "cada um por si". Feu Rosa é um bairro de gente criativa, e se essa criatividade se junta à fraternidade, ninguém pode com a gente! Então precisamos de solidariedade e companheirismo. Vejam o que está acontecendo no mundo todo. As pessoas cansaram de aguentar caladas, estão fazendo greve, estão ocupando praças, estão fechando ruas, estão fazendo manifestações de todo tipo. Cada vez tem menos pessoas caladas, cada vez mais gente grita. E a voz de Feu Rosa está sendo aguardada por todas e todos. E é claro, temida por quem tem poder às custas do nosso silêncio.

Não é uma urna que vai resolver nossos problemas. Não é o povo de Feu Rosa votando em alguém, que as coisas vão mudar. Não temos que dar a outra pessoa um poder que é nosso. A gente tem é que se unir e lutar por mudança. E aí verão que estamos vivas e vivos, antes de mais nada!



Por fim, eu gostaria de deixar uma música, que eu fiz em janeiro de 2010. É uma gravação caseira, o som tá baixo, faltam instrumentos, mas é de muito coração. E fala exatamente sobre a maior riqueza que existe em Feu Rosa e Vila Nova de Colares: seu povo.




E repito mais uma vez o apelo: vamos fazer nossos incômodos virarem movimento! E vamos nos movimentar! O convite já está feito!

beijinhos de maracujá!

Um comentário:

  1. Penso que o caminho é este, organização. Não moro em Feu Rosa, mas dava aulas no bairro e frequento a feira no domingo. Mas o curioso aconteceu pouco antes de eu ter que me afastar da escola Marinete. Uma aluna me proucurou e pediu para ajudar a formar um Grêmio estudatil. Sugeri que marcasse ma reunião na hora do recreio (nesta reunião compareceram quase 50 alunos) ou seja, eles tem sede por se organizar. Penso eu que o tal grêmio não saiu, mas por falta de experiencia (como sai da escola não pude continuar ajudando) que de vontade.

    As pessoas estão cansadas de mesmice e querem fazer a mudança, para isso tem que se organizar!

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