quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O primeiro protesto da minha vida...



Aviso importante: Essa história, apesar de baseada em um dia real, não é baseada em fatos reais... É uma ficção que não retrata a MINHA vida neste dia, nem a de alguém que eu tenha conhecido pessoalmente... Qualquer coincidência com a realidade é mera prova de que nesse dia as vidas de muitas pessoas se cruzaram!


Diziam que tinha começado de manhã, eu ouvi alguém falar que viu na tevê, então eu nem vi ao vivo, só vi no youtube depois... Rolou mó treta no centro, a polícia bateu na galera... Hoje, em janeiro, fevereiro de 2012 a gente já tá tudo fudidamente mongolizado, mas a menos de um ano, a quase sete meses, não era comum, a gente ainda não tava acostumado a ver o BME bater em estudante... E os caras da UFES se sentiram à vontade pra protestar contra o BME, porque eles nunca foram acostumados a bacolejo, e acham que se a polícia bate, tem algo errado... A gente que tá acostumado a ver a polícia bater, a gente não entendeu aquele segundo furdunço, que foi na frente da UFES...

Dizem que foi um bonde de estudantes que se juntou pra protestar contra a violência de manhã... Se liga que nem era protesto de passe livre não... Era um protesto de pacifistinha, pra polícia não bater no estudante... Eu fiquei vendo a galera lá da UFES cantar que "polícia é pra ladrão, pra estudante não", e fiquei pensando se eu era o ladrão que eles tavam falando que a polícia podia bater... Porque neles, os estudantes, não podia, mas em alguém podia...

Mas não era eu não... Eu era um trabalhador... Pô, sou de favela, mas corto um dobrado pra me manter... Só passei na UFES pra fumar um, depois da siesta, depois ia voltar pra oficina... Só que aquele tumulto todo me chamou a atenção... Como o dia era de pouco movimento, eu fiquei pra ver o que os moleques iam fazer...


Na verdade eu nem ia ficar fritando nisso não... Playboyzada brigando pra andar de graça em ônibus, tudo tem grana pra pagar... Eu que não tenho nada não tava lá fechando rua, enchendo o saco... Eu que tomo bacu todo dia, não tava protestando contra a polícia, contra a doze na nuca que varias molecadas já tiveram que sentir cano, lá nas quebrada... O cano de uma doze é muito mais assustador que a dor de uma bala de borracha...

Mas eu nunca tinha visto um tiro de borracha de perto, tava só gastando... E aí, tava de dentro da UFES, na calçada, vi a molecada arrancando grade pra fazer paredão pra proteger de tiro... Eles nem acreditavam que a polícia ia atirar neles de novo no mesmo dia duas vezes... Quando eu vi aquilo rolando, eu não acreditei, véi... Tinha mais gente do que mais cedo, e eles bateram mesmo assim... Gente correu pra dentro da UFES, onde tava a galera de bem, gente trabalhadora que nem eu... E os caras tacaram bomba de gás pra dentro... Trabalhador tomou bomba junto, igual trabalhador nos carros no trânsito, também tomou fumaça e tiro de bala de borracha... Parecia guerra... Só que era o BME todo equipado e disciplinado... E um bando de guerreiro fudido, tacando umas pedrinhas inofensivas, com umas tábuas que as balas de borracha quase perfuravam...


Mas ainda assim, tinha uma coisa estranha ali... Aqueles caras fudidos, o exército dos vencidos, tinha uma coragem que o exército do vencedor não tinha... O exército do vencedor tinha ÓDIO, eles atiravam pra tudo que era canto, tinha criancinha no teatro da UFES, e eles tavam pouco se fudendo, parece que tinham saudades da ditadura, que queriam poder torturar playboy de novo... Porque hoje só vale torturar preto de favela... O ódio deles era como se eles tivessem com saudade de torturar playboy de novo... Mas o exército dos vencidos tinha uma CORAGEM que era bonita, que eu nunca tinha visto igual, véi... As pedras que eles tacavam eram as pedras mais lindas, não porque a mira fosse boa, os caras mandavam mal pra caralho... Mas eles tinham muita coragem no braço, e o braço tacava pedras corajosas... Parecia MC's fazendo músicas em forma de pedrada...

E velho, parecia mesmo coisa de pancadão, aquela guerra que rolou... A galera que ficou na rua, foi andando devagar, até entrar lá na entrada de carro, lá em cima, e enquanto isso a galera tava se escondendo da fúria dos caras cá dentro da UFES, e defendendo a molecada do teatro das balas... Dizem que até o patrão lá da UFES, o professor mais fodão lá, sei lá, o presidente, eles falam, eu acho... Dizem que até o cara tomou rojão na lata pra aprender o que a gente já sabe na favela a muito tempo... Cê pode ser vereador, prefeito, presidente, pode ser o Papa, pode ser até o Obama... Se você não for traficante, a polícia tá pouco se fodendo pra quem você é... Que eu sou mecânico, tenho uma filha linda, que eu tenho uma mãe trabalhadeira, que eu tive um pai caminhoneiro, que eu era o rei das pipas lá no bairro, nada disso importa... Eu posso ser até o presidente da UFES, eles mandam bomba... Eles tinham ódio e queriam foder playboy, mesmo que fosse o presidente dos playboys...

Mas depois a galera se reajuntou, e eu não entendi aquela parada, véi... Eles fizeram tipo uma reunião de novo... Juntou uma galera... E tinha mais gente ainda do que tinha na rua na hora que a polícia bateu... Eu fui lá no meio ver o que rolava... A galera falava umas palavras e todo mundo repetia, aí depois falava mais um pouco e todo mundo repetia de novo... Aí eu vi que aquela galera, depois que apanhou, aprendeu a falar a mesma língua... Até quem não tinha apanhado falava a mesma língua... Aquela multidão na reunião tava todo mundo sintonizado...

Aí quando eu fui ver, eu tava afundado na mesma linguagem deles também... Falando uma língua gringa que era tipo um português... Era uma língua de quem não tava feliz com o que rolou... Parece que quando você não tá satisfeito e você sente a energia da outra pessoa que também não tá satisfeita, vocês criam uma conexão... E eu vi aquele dia que várias pessoas, mais de cem, mais de duas ou três centenas, podem falar uma mesma linguagem... E eu tava no meio disso...

Daí pra frente eu só lembro que eu tava no meio... A galera falou que não ia desistir, que ia pra rua, achei loucura mas botei fé... Se todo mundo vai, eu vou! Tô conectado! mas a polícia tava lá fora esperando... O choque queria bater mais na gente, tava querendo provocação... Aí a galera falou que não ia sair pra rua ali... E todo mundo correu por dentro da UFES, pro lado da outra portaria de carro, lá perto do sinal, antes do viaduto... Todo mundo foi correndo junto, e as viaturas nem tiveram tempo de se armar... Quando deu tempo de ver, a gente já tava na rua de novo, tudo tomado... Tudo nosso... Era ali que a parada tava rolando... Fechamos a rua e andamos muito com ela fechada, fomos na Reta da Penha inteira cantando aquilo: "Eu não acho, só Casagrande acha que o povo precisa de bala de borracha"... É verdade, véi, porque eu tomei gás e bomba? Eu nem tava protestando, eu nem fiz nada... Foi o Casagrande que fez aquilo comigo? O governador que disse que ia fazer o estado ficar maneiro, continuar melhorando, essa parada aí... O cara mandou bater em mim? Porra, que é que eu fiz? Isso não é normal mesmo não...

Mas a parada da ponte que foi tensa... Lá a galera se armou pra fazer corrente com os braços, ninguém se afastar... Mas quando os caras começaram a atirar na gente, só deu nego xingando e fugindo... E aí os caras começaram a prender a galera do nada, aí um cara no meio da galera disse que ia dar tiro pra cima, que ele era policial infiltrado, e todo mundo correu com medo... Só que correu na direçao do BME e eles meteram bala de borracha de volta... Levei uma na costela que tem marca até hoje, sete meses depois... Tinha polícia armada dos dois lados, pra onde ir? Mas aí piorou, começaram a prender pipoqueiro, a polícia de cavalo tirou espada pra gente... Eu tive que entrar num ônibus no meio da parada e ir embora... Isso que eu contei não é nem metade do que eu vivi, eu tentei resumir, porque foi um dia tenso... O primeiro protesto da minha vida... Acho que foi dia dois de junho, cara... Dois mil e onze... Primeiro protesto da minha vida...


E aquela energia, aquela conexão da rua, é uma parada tão boa, que eu nunca mais parei de ir... Foi só o primeiro de muitos...

"E o poder do povo

Vai fazer um mundo novo!"

beijinhos de maracujá!

2 comentários:

  1. Zé, e quando você pegou o ônibus eu entrei no HSBC e me escondi perto dos caixa eletrônicos. O gerente ficou uma arara. Não teve jeito, tive que ficar escondidinho ali... depois fugi e fui para um beco, perto de uns prédios grandes que tinha uma sindica vazia que não queria ver baderneiros dentro do condomínio dela. Não entramos. Como o beco era sem saída e o BME estava na entrada, uma moradora de alma cheia de bondade nos recolheu e nos levou para casa dela. Lá me dei conta de onde eu estava...na doideira que me meti. Me dei conta também que entre os foragidos que naquele pequeno apartamento se escondiam havia uma jovem grávida e foi muito emocionante para mim. no outro dia, descobri que quatro dos vários que no beco estavam foram pegos pelos fardados do BME...

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  2. Cachoeiro
    25 de agosto de 2012
    9 da manhã
    Em frente ao manicômio Santa Isabel
    Apareça por lá
    A luta continua.

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