domingo, 27 de maio de 2012

Da Lírica Ednardiana (delicadeza e violência)



Eu gostaria de compartilhar um confuso sentimento. Nas músicas do Ednardo, eu sinto uma coexistência pesada e forte entre delicadeza e violência. Ouço esse cara desde menino, mas já ficando adulto é que fui conhecer o conjunto de sua obra. Espero que curiosas e curiosos busquem conhecê-lo, porque seu trabalho não é muito disseminado. Eu o considero o maior poeta vivo da música brasileira, e sei que em tempos tão sombrios como os tempos capitalistas, não daria pra um ariano assim tão profundo e genial ser ícone midiático. Os maiores arianos são os que mais trabalham nos bastidores, nos subterrâneos, o sucesso dos arianos não se mede pelo quanto eles aparecem, mas pelo quanto eles imprimem sua marca no arrogante campo do aparecido, de lá do auge de seu impensado desaparecimento.


Não é que arianos queiram não aparecer, eles se escondem sem perceber que o fazem. Não é do campo da intencionalidade e da volição, a sua discrição, e sim um imperativo de seu corpo. O corpo ariano é, assim como dizem, meio mineiro: come quieto.

A lírica ednardiana não tem porta de entrada. Mistura o belo mais sublime com o belo mais esquisito, o experimental e o popular, o antigo e o moderno. Aliás, essa mistura clássica entre antigo e moderno (que quase todo mundo tenta fazer, na verdade), não poderia ser melhor aplicada por outra pessoa que não um ariano, e esse é o papel do Ednardo na música brasileira, na minha opinião: efetivar o projeto mais clichê, mais perseguido, e no entanto nunca tão bem alcançado. Acho que Ednardo faz parte do trio de compositores que o alcançou em plenitude na música brasileira (os outros dois são Itamar Assumpção e Sérgio Sampaio, pra constar).

Já que a lírica ednardiana não tem porta de entrada, vou inventar uma porta qualquer, à maneira dos inventores aquarianos, que é o que me é possível fazer. Fui lá num site de letras e peguei a letra de Pastora do Tempo:


O cavaleiro do medo
Usa do ouro a razão
Pra ofuscar os meus olhos
E confundir minha emoção
Não sabe que a luz que me guia
É da estrela que irradia
A linda pastora do tempo
Que guarda o meu povo eterno
E livre o meu pensamento


Quem faz a história da vida
Com ela rompeu as entranhas do chão
Quem quer saber do que está escondido
Procura no fundo dos olhos do povo
E dentro do seu coração
Vão com o vento as palavras
São como pombos-correio
Mas estão sempre atrasadas
Pois o seu vôo é lento
E o meu pensamento é ligeiro

Pra um psicólogo vigotskiano, um poema assim traz muita alegria e três anos de profundas análises, mas não é disso que quero tratar. Da relação entre pensamento e linguagem (cuja principal unidade de análise é a palavra, segundo Vigotski), só me interessa neste post uma coisa: a lentidão da palavra, que arrasta só um rastro do pensamento. A palavra voa com o vento, como pombo correio, mas ainda não tem toda a ligeireza e liberdade do pensamento. Me parece uma música suave, e de fato ela é extremamente delicada no trato lírico, mas suave ela não é. A violência tá justamente aí: ela denuncia uma força opressora, e denuncia a fragilidade dessa força, em função de uma característica secreta nossa, que é uma arma contra essa opressão. O pensamento que deixa as palavras pra trás é um pensamento guiado por uma estrela pastora, que organiza as idéias que o medo tenta desorganizar. Ednardo poetizou um grito ameaçador contra quem explora: TOLOS! Nunca confundirão nossa emoção, a liberdade do pensamento de nosso povo está eternizada.


Mas acho até que expressei mal a violência de Ednardo, ele não entrega o jogo tanto assim. Ela está repleta de Vontade Guerreira, e a Vontade Guerreira não é burra de ser sempre frontal no enfrentamento. Em momentos de repressão como os que forjaram este poema de Ednardo, a violência das guerreiras costuma fazer bom uso da mandinga, e o ariano Ednardo faz uso dela o tempo inteiro. Vou me explicar: a lírica guerreira ednardiana não conta para o opressor sobre o fracasso de seu artifício do medo. Ele conta para nós, conta para o seu povo eterno. Um compositor popular é assim, ele escreve de povo pra povo, e onde o opressor só vê plástica, os oprimidos reconhecem uma ótima arma pra lutar contra a opressão. A burguesia acha que o Ednardo é só um poeta, mas nós que também somos Guerreiras, vemos na delicadeza de Ednardo um convite à violência.

E aqui está o que oculta a ligeireza do nosso pensamento violento para os "cavaleiros do medo": a lentidão da palavra. Para nós, ela é pombo-correio, ela é instrumento da lírica, da poética. Mas nós não nos deixamos prender a ela. Não somos dependentes da palavra, nem da linguagem, nem da burocracia, nem das leis, pra fazer o nosso pacto de conjuração. Conjuramos fazendo uso das palavras, mas conjuramos apesar delas. Conjuramos fazendo uso das leis, mas conjuramos em oposição a elas. Fazemos uso inclusive do que queremos demolir. "Quem quer saber o que está escondido procura", segundo Ednardo, em dois lugares, a saber: "no fundo dos olhos do povo e dentro do seu coração". A gente faz uso da palavra, mas na hora H, a gente sente o que o coração da gente diz, e olha nos olhos de nossas companheiras e companheiros, de nossa tribo guerreira, pra saber o que seus corações estão dizendo, e seus olhos estão contando pra gente.

A linda pastora do tempo é a estrela organizadora de nossa máquina de guerra, é a estrela organizadora de nossa matilha. É ela que nos põe em condição de intuir a hora certa de agir, quando o inimigo, com todo o seu aparato censor, capturar os pombos-correios de nossas palavras. Podem calar nossa voz, mas nunca calarão o brilho das nossas estrelas e do nosso olhar, muito menos o fogo de nossos corações. Se a censura entendesse Ednardo, viria que no meio de tanta delicadeza, ela está sendo violentamente ameaçada.

Vou concluir a primeira parte dessa nossa viagem na lírica ednardiana com outra porta forjada, já que a lírica guerreira não tem entrada nem saída. Pra essa porta de saída que inventei, lhes apresento Estaca Zero:


Cada braça de caminho
Um soluço de saudade
Toda vereda de roça
Vai descambar na cidade


E a gente fica sereno
Desconhecendo o destino
E com um sorriso besta
De quem sabe onde chegar


Em cada prédio ou palmeira
Luz de neon ou luar
Elevador, capoeira
A gente vai se assustar


Mas faz de conta que sabe
Que tem um canto da estrada
Chamado estaca zero
Onde a gente pode dizer
O rumo que quer tomar


Cada braça de caminho
Um soluço de saudade
Toda vereda de roça
Vai descambar na cidade

Uma canção sobre sair de casa pra conhecer o mundo, sair da vila pra se jogar na cidade. A delicadeza de quem descreve o percurso rumo a uma nova vida, em um novo lugar. A estaca zero que Ednardo fala é um ponto dessa caminhada em que a gente decide pra onde ir, decide se vai ou fica, decide se vai ou não. A estaca zero é o ponto da dúvida e da decisão. E a mandinga guerreira de Ednardo está em um lugar improvável, alguém já achou? Onde está wally leitores Guerreiras? onde está? Como diria o Marcelinho: "Não sei! Vamos ver?"


Apesar de a gente se assustar, a gente faz de conta que sabe desse canto da estrada, chamado estaca zero. A gente faz de conta porque não sabe. Desconhecer o destino nos deixa serenos, nos dá um sorriso besta. Um sorriso de quem sabe onde chegar. Mas a gente não sabe nada, só faz de conta que sabe. A gente põe na cara uma certeza pra suportar a incerteza de enfrentar o destino, de se jogar no mundo. Faz de conta que foi a gente que escolheu se dá o play ou não nessa jornada. Faz de conta que foi a gente que escolheu o nosso destino, que não foi o nosso destino que nos escolheu. Mas afinal, a gente pode ou não pode dizer o rumo que quer tomar?

E é aqui que está o segredo. Se a gente conhece o destino, a gente não diz o rumo que quer tomar, a gente toma o rumo que o destino diz pra gente. Quando a gente faz de conta que sabe que pode dizer o rumo que quer tomar, a gente não sabe que não pode, a gente desconhece o destino, e aí a gente decide o nosso rumo, acha que sabe onde chegar, e aí sorri um sorriso besta. Inventamos no destino um caminho que o destino escondia da gente. O segredo pra tomar as rédeas do destino é ignorar que o destino não nos dá as suas rédeas. A ignorância mais rebelde que pode haver, é a ignorância diante dos limites da vida. Tem uma frase clichê, que expressa bem o que eu quero dizer. É uma frase que o Google disse ser de Jean Cocteau, mas segundo a Wikipedia, talvez possa ser também de Mark Twain: "Não sabendo que era impossível, foi lá e fez".

Explicando melhor: o "sorriso besta" é na verdade o "sorriso de quem se faz de besta". Se em cada braça de caminho há um soluço de saudade, e se toda vereda de roça vai descambar na cidade, então é preciso se fazer de besta pra poder conviver com os sustos dessa cidade
 sem enlouquecer
. Os olhos curiosos brilham diante de tudo o que é novidade nesse destino desobedientemente inventado. Não há maior proteção, diante dessa selvagem novidade, do que se fazer de besta. Lição ednardiana pra quem quer, como eu disse no início, deixar sua marca na história sem enfrentar as barreiras que os holofotes trazem junto. Quanto mais alarde, mais alaga, então tramemos no subterrâneo, e nos façamos de bestas. Todo ponto da estrada é estaca zero, pra quem cinicamente finge não entender o que está rolando. Ponha no rosto uma expressão de quem acredita em tudo que te contam, que quanto menos eles sabem que você tá conspirando, mais perigosa sua conspiração será. Quanto mais você parece ser inofensivo, adequado e adaptado ao sistema, mais se torna violentamente nocivo a esse sistema, e mais pode dizer o rumo que quer tomar. "Enquanto o caos segue em frente, com toda a calma do mundo", dizia um outro. A velha nova ameaça está por todo lugar, disfarçada de pura delicadeza plástica, como um capoeirista que finge que só dança pra inglês ver.



Vai vendo, inglês, vai vendo!

(continua...)

beijinhos de maracujá!


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