sábado, 19 de maio de 2012

Superação, uma palavrinha muito sapeca!

Eu decidi escrever esse texto pra dizer o que acho sobre uma palavra. Nossa! Um texto sobre apenas UMA palavra? Isso mesmo! Mas não é uma palavra qualquer. Vejamos: ela tem três sentidos, sendo que dois deles são um só, ou seja, são dois sentidos (um dialético e um anti-dialético), e eu escrevi esse texto para me posicionar em relação a estes dois sentidos (a favor de um deles e, de certa forma, contra o outro).

Vou chamar os dois sentidos de "Superação Conservadora" e "Superação Revolucionária", ok? Espero que esse meu escrito sirva para vocês fazerem bons usos dessa palavrinha.

I - A Superação Conservadora

A superação conservadora, reformista ou reacionária, é um valor muito propalado em nossa sociedade, em tempos de neo-liberalismo e individualismo. É a idéia de que a sociedade é um cenário e os indivíduos são atores neste cenário. Já que é assim, o sucesso das pessoas depende da forma como elas atuam, e o cenário não passa de um plano de fundo que não interfere nessa atuação, ou se interfere, não tem tanto valor quanto a atuação desses indivíduos, desses atores. A dignidade humana depende da ação individual desses atores. Se tem vários seres humanos na merda, não dá pra ficar perdendo tempo ao caçar no cenário a causa dessa merda coletiva, o importante é que cada indivíduo faça um esforço individual pra sair dessa merda, e se esse esforço dá certo, se esse indivíduo tem sucesso, temos aí um exemplo de SUPERAÇÃO. Um indivíduo superou as condições coletivas, atuou bem tendo ao fundo o cenário social e VENCEU! A idéia da vitória, diretamente ligada à idéia de "mérito", tem a função de colocar aos indivíduos a responsabilidade por seu fracasso e seu sucesso.

Para defender essa teoria, é preciso torturar a realidade, extraindo dela uma percepção distorcida, equivocada, mentirosa. O sucesso do indivíduo é produzido a partir de uma conjugação de processos diversos, o estudante que passa no vestibular não conseguiu a vaga na universidade APENAS por seu mérito, houve muito trabalho alheio intervindo no seu processo, e essas pessoas não vão usufruir dessa vitória. O moço pobre que vira esportista famoso, o cadeirante que supera o preconceito e vence, a moça que sofria abusos na família e se torna escritora de sucesso (entre outros exemplos de superação que a mídia ADORA mostrar), são histórias individuais produzidas por processos históricos e coletivos, assim como TODA história de vida. A nossa sociedade produz coletivamente tanto os POUCOS sucessos quanto os MUITÍSSIMOS fracassos. Nem o sucesso nem o fracasso são puramente individuais.

Claro que os indivíduos fazem parte da autoria de sua história (o sucesso é um tipo de história individual, o fracasso é outro tipo), mas não são autores sozinhos. A história individual é a síntese dialética de processos coletivos, ou seja, a vida de uma pessoa só é possível de uma maneira assim ou assada diante de uma sociedade assim ou assada, e as escolhas individuais podem mudar pra cá ou pra lá os rumos da sociedade, das condições concretas dela, e do pedaço de sociedade chamado indivíduo, mas muda pra cá ou pra lá dentro de um horizonte limitado. O indivíduo não pode promover grandes mudanças em sua história sem mudar a sociedade que limita o seu horizonte e o horizonte de todos os indivíduos.

O pressuposto básico da idéia que eu estou defendendo está, então, na seguinte frase: o indivíduo é um pedaço de sociedade. Dialeticamente, todo indivíduo é um pedaço diferente dessa sociedade, mas ao mesmo tempo todos os indivíduos são pedaços da mesma sociedade. Pedaços diferentes da mesma sociedade, os indivíduos são enganados quando o discurso da Superação Conservadora diz que eles devem lutar pra vencer na vida e apenas isso. Isso não basta. Se todos lutarem para vencer na vida, essa sociedade da precariedade não tem vaga para todos no panteão do sucesso. A Superação Conservadora é um privilégio de poucos, e digo mais: aqueles que acham que estão vencendo, na verdade estão sendo utilizados por esse sistema como vitrine, para enganar outros com a idéia de que eles devem continuar se esforçando DENTRO deste sistema, para vencer dentro dele, para crescer dentro dele, para superar a precariedade que é intrínseca a ele.

Só um sistema sustentado na precariedade precisa de exemplos de superação. Um sistema sustentado na plenitude compartilha a plenitude com todas e todos. Essa idéia básica pretende acabar com o individualismo (que incentiva os indivíduos a vencerem dentro deste sistema atual, de precariedade), e produzir relações sociais fundadas na valorização tanto do indivíduo quanto da coletividade, já que uma coisa não é o oposto da outra, mas sim dois lados de uma mesma moeda. Quando você acaba com um sistema pra criar outro, você não joga fora tudo o que o sistema anterior trouxe, produziu, ofereceu. Você usa as ferramentas oferecidas pelo próprio sistema para destruí-lo, e com isso, o sistema destruído é ao mesmo tempo levado mais longe do que qualquer lugar que ele pudesse alcançar em seu formato anterior, limitado e precário. Ou seja, ao mesmo tempo que você destrói algo (nega o sistema anterior), você leva esse algo para além (o afirma transformando em um sistema novo, que usa de forma melhor o que o sistema anterior havia criado). Esses são os sentidos negativo e afirmativo da Superação Revolucionária.

II - A Superação Revolucionária

Esse é o nosso princípio básico, não distorcer a verdade. Por isso um conceito revolucionário de superação precisa ser dialético. Sem dialética, um conceito sempre distorce o real. O conceito individualista de superação MENTE para os indivíduos, quando mostra apenas um pedaço da verdade (a superação individual), e OCULTA o resto da verdade: que essa sociedade é precária, e que não tem lugar pra todo mundo no topo privilegiado do sucesso; que pra alguns terem o sucesso individual, milhares, milhões, bilhões precisam estar afundados na merda; que são aqueles que estão na merda (a maioria dos fracassados) que produzem o sucesso da minoria, e não os fracassados que produzem seu fracasso e os vencedores que produzem seu sucesso, como tanto dizem; que mesmo entre os pouquíssimos que estão no topo do sucesso, uma pequena minoria subiu pela via da superação individual, grande parte dos de cima chegaram ao topo explorando os de baixo, ou herdando o que as gerações anteriores acumularam através da exploração.

A crítica das idéias reformistas, conservadoras e reacionárias, como a idéia da superação individual, denuncia as ilusões (por exemplo, mostra que o sucesso se sustenta na exploração coletiva, e não na superação individual), e abre caminho para as idéias verdadeiras. É coletivamente, e não individualmente, que as idéias verdadeiras são fabricadas. Quando as pessoas se juntam em torno da crítica, demolem as idéias falsas e erguem idéias novas, fruto de esforço coletivo, e por isso, mais legítimas. Esse blog, por exemplo, é uma tentativa de juntar pessoas em torno desse exercício crítico, de construção coletiva de verdades revolucionárias. O mecanismo da crítica é um ótimo exemplo da Superação Revolucionária.

Ao contrário da superação individual ou conservadora (que quer conservar a sociedade e o sistema, que quer reformar essa sociedade e esse sistema, através do sucesso de alguns indivíduos), a superação coletiva ou revolucionária quer negar TODO o sistema de precariedade, mas AO MESMO TEMPO, não joga fora os avanços que esse sistema produziu, muito pelo contrário, leva esses avanços para além daquele local limitado que um sistema de precariedade poderia levar, afirmando esses avanços ao avançar MAIS, rumo à plenitude. A idéia da superação revolucionária é de que coletivamente, podemos planejar relações de plenitude, ou seja, relações em que todas e todos podem ter acesso ao que quiserem, dentro das possibilidades atuais, sem que ninguém precise ser explorado. Atenção para o "dentro das possibilidades atuais".

Isso diz respeito ao aspecto afirmativo da superação revolucionária. Não dá pra socializar o que não existe, mas como os seres humanos, na sociedade de precariedade, inventaram tanta coisa boa (mas dividida de maneira desigual, precária, restrita a uma elite e impedida à grande maioria dos que trabalharam para que essas coisas fossem inventadas), uma superação revolucionária vai AFIRMAR as coisas boas que foram inventadas, e a maneira de afirmar isso é socializando o acesso a essas coisas boas. Mas a sociedade de precariedade também produziu muitas coisas que não nos convêm mais (por exemplo, a própria precariedade, e a divisão desigual dos bens e produtos), e essas coisas devem ser simultaneamente NEGADAS, na produção de algo novo.

Não é um indivíduo que afirma ou nega, é a coletividade. Mas ao mesmo tempo, a afirmação ou negação da coletividade passa pela síntese da afirmação ou negação de cada um dos indivíduos, de todo indivíduo, e de todos eles. Não se trata, porém, apenas de somar a opinião de cada indivíduo, como na eleição de uma democracia representativa. No cotidiano e no planejamento da vida social, diversos debates apontam para o caminho que deve ser seguido, muitas vezes a sociedade vai tomar caminhos opostos, de acordo com a opinião de grupos distintos, e esses caminhos opostos podem tanto se enfrentar mais à frente no tempo, ou podem acabar se juntando num caminho só, na complexidade dialética do avanço revolucionário. Uma verdadeira democracia se faz assim. Não se trata de somar apenas vontades individuais (que são, na verdade, vontades de "pedaços de sociedade", ou seja, expressam a tendência hegemônica). Para superar a tendência hegemônica produzindo vontades verdadeiramente coletivas, novas e democráticas (produzindo verdades coletivas), é preciso fortalecer tanto o combate de idéias opostas quanto o conjugamento de idéias diferentes, que são os dois movimentos do diálogo. Sobre isso, recomendo texto ainda incompleto que estou escrevendo com Anidalmon Morais, e que fala sobre o Corpo Aberto ao Diálogo e à Luta.

III - Conclusão: Superar dentro ou fora das regras do jogo?

O exercício da crítica pede uma vontade guerreira, pede que não nos submetamos ao individualismo e à mentira da democracia formal. É preciso romper com o status quo, buscando a superação dialética dessa sociedade precária, e a construção de uma nova sociedade, plena. A verdadeira democracia é a metodologia de gestão do sistema de plenitude, e implica na desobediência às leis da democracia formal.

Não dá pra fazer revolução se não dissermos NÃO para as regras do jogo, não dá pra superar um sistema se nos limitarmos apenas às regras dele. O máximo que conseguiremos é alimentar superações individuais (como vencer nas regras do jogo que induz à derrota).

Tudo bem que para superar o atual sistema é preciso saber a hora certa de jogar dentro das regras, mas isso só faz sentido se utilizarmos as regras contra o próprio sistema. Para superar uma sociedade fundada na trapaça, é preciso trapacear. As leis que existem hoje NÃO SÃO AS NOSSAS LEIS, são as leis de quem se beneficia da precariedade, é preciso mostrar pro bispo que os peões não aceitam mais o jeito como a missa tá sendo rezada, e que quando o rei da nossa cor é derrubado, o jogo ainda não acabou pra nós. Derrubemos nosso próprio rei. É claro que não vamos abandonar por completo as regras, não tem como sair do sistema precário pra depois inventar um sistema pleno, mas a superação revolucionária não se faz apenas afirmando o que o sistema de merda nos dá de avanços. É preciso saber a hora e o jeito certos de negar! Superar dentro e fora das regras do jogo é a velha nova ameaça!

Superar a superação, eis o nosso imperativo, eis a nossa meta! E quem aposta nisso como a gente, estamos convocando guerreiras e guerreiros. Xeque mate!

beijinhos de maracujá!

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