quarta-feira, 3 de junho de 2015

Há Exatos Quatro Anos, Nasci Pela Segunda Vez! (ou Sobre Aquelas Pessoas que Nunca se Esquecerão de 2 de Junho de 2011 em Vitória ES)



Não é exagerado dizer que eu corria risco de vida, mas não é disso que eu estou falando. Era um dia com PM, e qualquer episódio com PM envolve risco de vida, ainda mais quando se trata de um militarismo racista, que funciona dependendo de estereótipos, que estigmatiza pessoas como eu. Nesse caso era mais que um episódio com PM, era um episódio DE UM DIA.

Mas não é disso que eu estou falando. 2 de junho de 2011 não é o dia mais marcante da minha vida porque eu corria risco de vida, não é por isso que eu digo que naquele dia nasci pela segunda vez. Eu tô falando de maldade, de malícia, de inocência, de relação com a realidade, com o mundo, com a institucionalidade, com as leis. Tudo mudou na minha vida desde então, e nem as Jornadas de Junho de 2013 fizeram isso mudar em mim. Nem mesmo o OcupaAles. Quem bate, esquece, quem apanha não!


Uma coisa muito forte nos unificou naqueles dias que se sucederam ao confronto de um dia com o BME de Casagrande (se não me engano, o primeiro confronto de protesto com o BME na Grande Vitória, naquela gestão!), por mais que nem naquele dia éramos um movimento de apenas uma opinião, e por mais que mesmo hoje temos divergências e até mesmo incompatibilidades profundas, rupturas drásticas, há algo que nos unificou naqueles dias como um grupo só de pessoas humanas, e que até hoje nos unifica, algo que temos em comum e que o resto da humanidade não tem.

Não é apenas a lembrança daquele dia. Se nós falarmos daquele dia com outras pessoas que não fazem parte desse nosso grupo, outras pessoas se lembrarão que o dia ocorreu, algumas que até viveram pontualmente uma cena ou outra indiretamente ligada aos conflitos. Estou falando de algo mais forte do que a lembrança, estou falando da lembrança do que vivemos, a lembrança dos momentos que a pele presenciou, dos percursos, das emoções, dos sabores e dos aromas, das dores, das ofegantes doses de adrenalina. É um nível mais profundo de lembrança, a das estratégias, a das opções, a das divergências, dos percursos e das soluções.

Tentando entrar em contato com quem não faz parte do nosso grupo:

Olá, eu me chamo José Anezio e no dia 2 de junho de 2011 participei dos protestos do MCA - Movimento Contra o Aumento - na capital da cidade Vitória-ES.

Havia ocorrido uma sucessão de atos naquele ano, desde o dia 19 de janeiro, data do primeiro ato do MCA, mantivemos três meses com frequência média semanal de atos e assembleias, em algumas semanas mais de uma assembléia ou reunião, em algumas semanas, mais de um ato. Fizemos atos em diversos lugares e com diversos formatos, foram cerca de quinze atos entre janeiro e abril daquele ano. A luta era contra o aumento da passagem, mas também por outro modelo de política de transporte para a Grande Vitória, combatendo a lógica centrada no lucro, para que o Sistema TRANSCOL pudesse se voltar para os interesses da população geral, maioria da sociedade desta regição metropolitana: o chamado "direito de ir e vir".

Fazíamos ato de rua com dois principais objetivos. Abaixar o preço da passagem do Transcol e mudar seu objetivo essencial do lucro das empresas para o direito de ir e vir do povo. Naquele momento nosso modelo de atos de rua era 2005. 2005 estava na memória de militantes do MCA e de parte da população geral. Não vou falar muito de 2005 hoje, mas ainda escreverei nisso aqui no Artifício Socialista. Este texto é o retorno do blog depois de quase sete meses parado, tenho muitos temas engarrafados pra dar vazão aqui, mas hoje é sobre 2011.


(Entre parênteses, preciso dizer que eu tenho um projeto de trilogia, livro e animação, que fale dos atos em Vitória em 2005, 2011 e 2013, porque acredito que os de 2005 e 2011 foram causas relevantes das Jornadas de Junho de 2013, uma tese muito ousada de se afirmar!)


De qualquer forma, 2005 era um marco porque atos da juventude abaixaram a passagem, em uma semana em que a PM de Paulo Hartung sacou arma e reprimiu em frente à UFES. Uma semana de atos com cancelas da Terceira Ponte sendo abertas para os carros passarem sem pagar pedágio, e Paulo Hartung foi obrigado a abaixar a passagem.

2005 provava para nós, nos primeiros meses de 2011, que COM CERTEZA poderíamos intervir nos processos de controle do Sistema Transcol a ponto de revogar o aumento da passagem, se fôssemos às ruas. Em nosso imaginário, entre anarquistas, comunistas e ativistas de diversas outras visões de sociedade, de diversas outras formas de lutar, habitava a questão do conflito com a repressão, a da ponte ocupada com cancelas abertas, a das ruas paradas e a das ruas cheias de manifestantes (ainda não haviam ocorrido as Jornadas de Junho de 2013, então achávamos que 1000 pessoas já era rua muito cheia, para o ES!

(abrindo mais um parênteses, passou de meia noite, então já é dia 3, vai ser na madrugada de 2 para 3 de junho, mas já no dia 3, que esse texto será publicado, mas quando eu o comecei, ainda era dia 2 de junho, juro!)



Pois como eu dizia, em 2011 fizemos intensamente uns bons 15 atos, por aí! Em uma assembleia no mês de abril decidimos que iríamos ficar um tempo sem fazer atos, apenas mobilizando para um grande ato no dia 2, quinta de manhã! A ideia era mobilizar MUITA GENTE e fechar tudo, intransigentemente! Porém nos desmobilizamos, e um grupo muito restrito de pessoas se dedicou a fazer a divulgação do ato, pichações, cartazes colados nos pontos de ônibus, e nem acreditávamos mais que iria acontecer, a maioria de nós do MCA.

Eu mesmo, nesta manhã estava em aula, uma disciplina optativa da graduação. Dois dias antes havíamos feito ato até a porta do Palácio da Fonte Grande. Esse ato pacífico, com muita gente da academia, com muita gente militante dos Direitos Humanos, ocorreu no dia 31 de maio, e o assunto era a desocupação violenta praticada pelo BME de Casagrande em Barra do Riacho, Aracruz (interior do ES) no dia 18 de maio. Neste ato de 31 de maio uma comissão subiu para reunir com o vice-governador, Givaldo Vieira, que apenas apresentou justificativas estapafúrdias, e disse que o BME era "a polícia mais preparada pra lidar com multidão" de que o governo dispunha. Ou seja: lidar com multidão para o governo era saber lançar bombas de gás e atirar balas de borracha; e se não fosse o BME - Batalhão de Missões Especiais -, o povo desalojado em Barra do Riacho teria levado tiro de arma letal.



Pois na manhã de 2 de junho estava em aula, e soube que tudo estava fechado no centro de Vitória. Isso me deixou muito contente, nem fiquei tão insatisfeito por não ter estado lá. Eu já não podia mais ter faltas naquela disciplina e tal, mas o ato, pequeno e ousado, travava o trânsito e representava nossa indignação.

Na hora do almoço, no Restaurante Universitário da UFES, com algumas pessoas da chapa que eu compunha no DCE (Façamos Nós Por Nossas Mãos), descobrimos que o BME havia atacado as pessoas que lá manifestavam. Começamos uma comoção pelo campus de Goiabeiras da UFES. Como poderíamos nos articular com aquela luta, mesmo que à distância? Decidimos que faríamos uma mobilização pela UFES enquanto o grupo do Centro tentava se locomover para junto de nós, e às 14h faríamos assembleia em frente ao RU da UFES pra decidir ações em resposta à repressão.

Nossa mobilização na UFES se encontrou com o grupo que vinha do centro, e muito no espontaneísmo decidimos transferir o local da assembleia para A AVENIDA FERNANDO FERRARI! Fechamos a via e depois de algum tempo aparece o BME... Na atividade da manhã havia cerca de trinta pessoas, nesse momento já tínhamos duzentas. pra gente isso era uma multidão! O BME não chegou a negociar conosco a nossa saída, ameaçou destacar um grupo pra vir em nossa direção negociar, mas logo depois esse grupo recuou e começaram os ataques.

Havia um simbolismo de que estar no campus da Universidade Federal fazia as pessoas estarem protegidas, mas a verdade é que o BME atacou transeuntes, motoristas, pessoas que apenas observavam da calçada, atiraram balas de borracha e bombas de gás pra dentro do campus, inclusive no Reitor, inclusive em crianças que saiam de uma peça infantil no Teatro Universitário. O estacionamento do Teatro estava cheio de ônibus de escolas, isso fez alguma diferença para o BME? Não!



A indignação nos uniu dentro do campus, em frente ao teatro! A polícia nos observava do outro lado da rua, perto do McDonalds, e nós fizemos uma assembleia que já tinha em média mil pessoas! Depois de algumas avaliações e desabafos, decidimos sair correndo loucamente em direção à portaria sul e tomar novamente as ruas, em direção à Terceira Ponte... Resumindo a história, apanhamos novamente do BME na entrada da Terceira Ponte, decidimos terminar o ato voltando para a UFES via Leitão da Silva e ao lado da SEDU sofremos mais um ataque, com cavalaria e muitas prisões.

Nos reunimos no CALPSI depois do ato, todo mundo à flor da pele! Discutíamos sobre usar ou não a tática do contra-ataque à polícia, em um momento em que não se falava ainda sobre a tática black bloc, poucos setores do movimento já haviam acessado esse debate e a mídia não o pautava como fez em 2013. Buscávamos notícias das pessoas camaradas que haviam sido presas, e que demoraram mais do que o comum para ser levadas à delegacia (antes foram levadas para a quadra da sede do BME).

Fui embora da UFES com outra roupa que tinha na blusa, diferente da que usava na manifestação. Chegava em nós a notícia de que estavam parando os ônibus, mandando pessoas descerem e as prendendo. Estávamos entre o terror e a indignação!

Não vou continuar a história, apenas fazer um resumo: um ato foi chamado para o dia seguinte, às 17 horas! O ato deu no mínimo umas cinco mil pessoas, havia quem falava em sete mil, até mais do que isso, não sei dizer quantas pessoas estavam presentes, mas naquele dia o BME não nos atacou! Chegamos até a ponte, abrimos as cancelas, éramos fortes. Fizemos sucessivos atos, cancelaram um evento com o vice-presidente, sobre reforma política, organizado pelo carinha do TJ-ES, o Vals Feu Rosa, só porque fazíamos um ato na portaria do evento no primeiro dia. O mês de junho foi intenso de lutas, e apesar de não termos conseguido que o preço da passagem caísse, conquistamos uma melhora na circulação de ônibus de madrugada (muito menos que a nossa exigência de funcionamento pleno 24 horas, constante em nossa pauta de manifestações, mas avanços que nossa luta produziu), e tivemos repercussão nacional, principalmente entre a juventude de outras cidades que também lutavam por pautas parecidas.

Eu estou retomando o blog Artifício Socialista com este texto porque 2 de junho de 2011 inaugurou este Anezio que eu sou hoje. Você que lê isso e não viveu estas coisas na pele, saiba que existe um grupo de pessoas no mundo hoje que têm em comum uma contaminação incurável. Naquele dia inocularam em nós a certeza de que não temos no Estado burguês um parceiro ou um protetor, a certeza de que apenas a gente se unindo na ousadia é que o rumo das coisas pode mudar.

Eu perdi naquele dia a estrutura ideológica da minha ingenuidade, e gostaria de dedicar este texto a todas as pessoas que foram presas ou agredidas naquele dia! Nós fomos as barricadas de 2 de junho de 2011, mas muitas barricadas ainda virão, nas ruas deste estado do Espírito Santo!

beijinhos de maracujá!

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