sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Sobre a Incoerência e a Dó (ou Resposta a um Texto do Antonio David)


Hoje eu recebi um texto de Antônio David, ex-diretor da UNE pela Oposição de Esquerda, e hoje militante da Consulta Popular. É uma resposta crítica a um documento de um movimento social da educação. E eu acho louvável a iniciativa dele, de formular respostas às posições de outros setores da esquerda. O Antônio Davi sempre foi um exemplo de militante que entende a importância desta prática, que inspirou o Blog Artifício Socialista, e apesar de discordar de certos pontos em suas análises, sempre admiro a atitude de formulá-las e compartilhá-las: que fique de exemplo pra nós. Como se trata de um inspirador deste blog, me senti no direito de dialogar com o texto dele e fazer alguns apontamentos críticos também.

1.1) Assim como ele, também acho estranho que nós usemos dados incorretos nas nossas críticas. Acho importante que estudemos os assuntos acerca dos quais fazemos críticas, e quando vejo alguém fazendo críticas sem estudo, eu recomendo que estude mais. Quando alguém me critica por fazer críticas sem estudo, eu escuto a crítica com atenção, a auto-crítica é fundamental e indispensável na militância e na luta por hegemonia no processo revolucionário. No entanto, eu sempre recomendo que a pessoa estude mais, mas nem sempre de forma amigável. Quando a pessoa defende interesses comuns aos meus, eu recomendo o estudo como melhoramento das críticas dela. Quando ela defende interesses da classe oposta, eu faço a crítica como forma de deslegitimar a fala dela. Chamo atenção pro fato de o Antônio David usar um erro (ou nas palavras dele, uma mentira) para deslegitimar a posição de um documento do DCE da USP, entidade que luta à esquerda no movimento estudantil. Há algum antagonismo entre "dar pau no governo" e os interesses de classe que o camarada defende?

1.2) Mas apesar de achar estranho o uso de dados incorretos, entendo as confusões que a esquerda faz, afinal a imagem acima mostra dados do site da Câmara, em que a previsão orçamentária de investimento na educação era de 3,18% do orçamento. E o apontamento do Antônio David nos coloca uma tarefa, entender a diferença neste percentual de 3% para 5%, que inclusive consiste em distorções orçamentárias (grana que não tá indo pra educação, mas pra outra área indiretamente ligada, e acaba constando no orçamento como se fosse diretamente um investimento na educação) e principalmente em investimento da iniciativa privada. Não é a tôa que lutamos por 10% do PIB não apenas para a educação, mas para a educação pública. Parece uma palavra de diferença, mas quando paramos pra pensar no assunto, entendemos a imensa diferença que uma palavra faz.

2.1) Sobre o REUNI, concordo plenamente com o camarada, quando diz que acumula contradições, no entanto discordo plenamente quando ele diz que isso é o que importa. Acho importante que defendamos a mulher que sofre agressão doméstica, e não vejo incoerência em utilizar as contradições explicitadas por essa agressão para fortalecer a luta feminista, já que tal luta visa à superação inclusive deste tipo de agressão. No entanto, não acho que as contradições acumuladas pela agressão são "o que importa", e que devamos parar de combater as agressões domésticas porque elas colocam as mulheres em condição de enfrentar a contradição e lutar contra a agressão.

2.2) Fiz questão de fazer essa analogia, pra mostrar que as contradições do REUNI só são explicitadas porque a expansão retira a autonomia das universidades, e a esquerda sempre fez (e ainda faz) críticas ao REUNI acompanhadas da defesa de uma expansão em que estudantes, docentes, técnicos e toda a sociedade possam decidir como se dará (ao invés do modelo de expansão via assinatura de contrato e cumprimento de metas, que é a essência do REUNI). Aproveitar as contradições que o REUNI acumula é uma coisa, deixar de lutar por expansão com autonomia e aumento real de investimentos porque o REUNI acumula contradições, é outra coisa completamente diferente. A opressão machista fomenta o conflito e a luta feminista, e o REUNI fomenta o conflito e a luta justamente porque os estudantes entram numa universidade sucateada pelo REUNI.

2.3) Também tenho uma consideração à formulação do companheiro quanto à afirmação de que a classe média nunca lutará por expansão de qualidade. Gostaria de saber como ele entende os estudantes de movimento estudantil que, apesar da origem de classe média, estão conosco, estudantes de origem popular, fazendo movimento estudantil e lutando (inclusive contra o REUNI e por expansão de qualidade). Porque o movimento estudantil que luta a favor da classe traballhadora não é composto apenas por estudantes filhos de operários. Espero que a esquerda não cometa o erro de demonizar os "militantes pequeno-burgueses", porque eles também são estudantes, e quando eles fazem opção de classe para lutar por uma universidade a serviço da classe-que-vive-do-trabalho, isso acumula pra classe.

3.1) Outra coisa que acho importante pontuar: se alguém quer 10% do PIB já, e critica quem quer para daqui a dez anos, tá implícito que há discordância de quem não quer nem já, nem dez, nem sete (a direita). Mesmo assim, ainda parece que as críticas de quem defende "10% do PIB pra educação pública já" se restringem a quem não usa o Já, o que não é verdade. O Antônio David fez um recorte dessa crítica aos setores que não querem o investimento já, descontextualizado do projeto que está sendo formulado por quem faz essa crítica. Essa crítica se insere na dinâmica de um projeto maior, e querer 10% Já é uma tensão para que a educação possa ter o investimento necessário para que os estudantes não precisem, por exemplo, de metas privatistas para ter acesso ao ensino superior e às contradições acumuladas pelo REUNI. Com mais recursos, as outras mudanças globais propostas podem avançar.

3.2) E aí o camarada prefere ser compreensivo com o "governo em disputa interna" e acusar a gente de criticar os setores que não querem 10% já, ao invés de criticar a direita, e no entanto ele dedica as críticas do texto dele mais a nós do que ao governo. Não recebem a mesma compreensão os setores que segundo ele dão pau no governo "com fins eleitoreiros" e que praticam "demagogia" ao serem filiados a um partido e não defenderem o mesmo que o deputado do partido. Vejo aí uma compreensão de movimentos sociais em que o legislador de um partido deve ter mais poder sobre as pautas de um movimento do que as instâncias democráticas de um movimento.

3.3) Por exemplo, eu sou filiado ao partido do Ivan Valente, o PSOL, e também sou membro da Coordenação Nacional de Estudantes de Psicologia, a CONEP. O maior espaço democrático da CONEP é a plenária final do Encontro Nacional de Estudantes de Psicologia (ENEP). Se o Ivan defende 10% em cinco anos e a plenária final do ENEP decide que a CONEP deve defender 10% já, eu devo respeitar o que foi votado na plenária final do ENEP, ou devo concordar com o deputado do meu partido? O que o camarada chama de "demagogia", eu entendo como "autonomia dos movimentos sociais em relação aos partidos".

3.4) E a citação ao "votem na Heloisa Helena", achei inclusive uma agressão excessiva à militância do PSOL nos movimentos sociais da educação, porque mais uma vez descontextualiza duas práticas da esquerda socialista: crítica à política educacional de um governo através de movimentos sociais da educação e disputa eleitoral. Será mesmo que todas as pautas que eu, como militante do CALPSI-UFES ou da CONEP, defendo, se resumem a pedir voto para os candidatos do meu partido? Eu entendo que os anarquistas façam essa crítica, porque a formulação teórica deles na esquerda é crítica à tática eleitoral. Mas convido o Antônio David a repensar essa crítica dele, porque acredito que a compreensão teórica dele, sobre a relação entre disputa de eleições burguesas e o fortalecimento do movimento socialista, esteja mais próxima das nossas formulações no PSOL (de matriz marxista) do que das formulações anarquistas. Não sei se foi uma confusão acidental ou intencional, mas fica mais fácil evitar confusões assim quando a gente entende que a minha opinião, como membro de um movimento social que é livre pra se filiar a um partido, não é sinônimo nem da posição do meu partido, nem da posição do movimento social que componho. Eu como membro dos dois, devo respeitar a autonomia de ambos nessa relação.

De qualquer forma, é sempre um prazer poder dialogar com formulações de companheiros da esquerda socialista. Acho que é assim, através da crítica fraterna e radical, que construiremos sínteses e unidade na luta. Que contribuições como a do Antônio David continuem incitando a esquerda a formular contribuições que incitem a esquerda a formular, e assim a gente, na luta, se forma pra luta. Mas é claro, sem nunca deixar de colocar abertamente as divergências, de criticar as incoerências, e igualmente importante, sem nunca ter dó.

beijinhos de maracujá!

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