segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Sobre a falsa certeza absoluta (ou Outras Palavras e a origem das idéias misteriosos)


Acordei com uma sensação estranha, que na hora me pareceu numinosa, mas depois foi se assentando e eu entendi que era uma dúvida: "se roubei primeiro ou se primeiro fui roubado". Depois disso, veio uma insônia violenta, e em seguida me vieram uma legião de pensamentos ensandecidos, como um arrastão de pensamentos, numa cidade sitiada, em meio a uma guerra civil dos pensares. "Vou sem medo de altura, sem perigo de cair..."

Daí me deixei invadir por um complexo de pensamento que me invadiria mesmo que eu não autorizasse (mas que, autorizado, me foi mais útil do que se eu fosse invadido resistindo): "sempre que falta algo na compreensão uma seqüência de sentimentos, há aí um roubo?".

É uma questão de psicologia, das mais difíceis de explicar. Por exemplo, quando nos desconhecemos, e de repente nos encontramos nos caminhos da vida, não temos motivos pra confiar um no outro, a não ser que "o santo da gente bata", o que não ocorre sempre, e nem com todo mundo. Um caminho possível é nunca estabelecermos relação de confiança, e isso é o mais corrente. Um segundo caminho é que calculemos, no tato, cada passo desse caminho, a partir do primeiro encontro, e construamos uma relação que vá, passo a passo, se solidificando, numa confiança construída cheia de dedos. E há o terceiro caminho, que é aquele em que de repente você sente por algum motivo que pode se jogar, e se joga! Por ter apostado e não ter se frustrado, cria uma relação de confiança, ao meu ver, muito mais forte e mais profunda do que aquela construída no tato matemático. Mas eu gostaria de atentar ao "por algum motivo". Normalmente eu passaria batido por essa expressão, mas o complexo de pensamentos que me invadiu foi justamente sobre esse tipo de incerteza. Que motivo é esse? O caso da confiança foi apenas um exemplo, pra gente encontrar esse tipo de sentimento, que aparece em muitos outros casos.

Por algum motivo, algo muito magnético nos joga numa situação que nos prova em definitivo que podemos confiar. A minha tese era de que há aí uma ação furtiva (furto ou roubo, não sei, mas algo da natureza da ilegalidade). Há uma pessoa que se dedica a causar um clima tal no ar, que gere esse campo magnético que atraia a outra pessoa a se permitir o risco que prova e atesta a vindoura relação de confiança. Criar o magnetismo é o que estou chamando de roubo, de ação furtiva. No entanto, a pergunta é: o que leva alguém a querer roubar a confiança de outra pessoa? O que nos leva a buscar em outro ser humano uma relação construída não nos protocolos padronizados da confiança tradicionalmente pactuada, construída a cada passo, mas sim nesse súbito e magnético hábito de tentar seduzir e roubar de outra pessoa a confiança? Nossa tese era de que para roubar, é preciso ser primeiro roubado, não é isso?

Pois bem... Todas essa idéias já estavam comigo quando o complexo de pensamentos fez arrastão em mim.



Sentimentos que não sabemos de onde vêm, que nos tomam violentamente e ficam fazendo eco, acelerando respiração, batimentos cardíacos, sentimentos aflitos e às vezes até tristes ou alegres, daqueles pelos quais passamos geralmente despercebidos, mas que se atentarmos, percebemos que vêm de alguma súbita ruptura e que são fruto de um deslocamento subjetivo, como se algo tivesse sido roubado em nós, que deixou uma lacuna e fez o castelo de cartas inteiro desabar. O frio na barriga, o medo da montanha russa, que para alguns é horrível e para outros é delicioso, mas é fato que há borboletas em todo o sistema gastroentérico de quem passeia por esse sistema. Deslocamento subjetivo profundo. E depois disso parece que não tem como esquecer daquela idéia incômoda e insistente que fica, daquele nome ou daquele rosto que ficam cicatrizados na memória da gente, como uma cicatriz que o corpo carrega pra sempre depois de uma ferida, e que marcam na memória do corpo o evento que feriu. Roubar, nesse sentido aqui colocado, é igual a ferir: muda tudo, deixa marca, nada passa ileso. E depois disso, lembrar é reviver com belas cores cada momento que testemunha o bom roubo vivido.

A óbvia pergunta é: de onde vêm esses sentimentos que não sabemos de onde vêm? Se conformar com a idéia de que não sabemos é muito pouco. De onde vem o medo de dizer o que sentimos? De onde vem a falsa certeza absoluta (talvez o maior paradoxo da história dos sentimentos humanos)? E acho que preciso, por fim, me atentar um pouco para isso.

A falsa certeza absoluta é mais ou menos assim. Tenho certeza de que você sabe o que estou sentindo, afinal, cada movimento e cada passo meu me denunciam (às vezes sem querer, às vezes como forma de confissão), e olhando pra você, deduzo o que cada movimento seu diz, afinal, você também pode querer confessar coisas e você também pode tentar não confessar coisas que, sem querer, saiam (deduzo a partir de seus movimentos, mas também a partir de como vejo meus movimentos me expondo). Tenho certeza de que ambos temos certeza sobre o que sentimos, logo nada precisa ser dito. Certeza absoluta, que dispensa palavras. Mas pensando bem, será que temos mesmo certeza? Se a certeza é absoluta, não há motivos para que as palavras sejam dispensadas, e mantê-las dispensáveis é nada mais, nada menos, do que uma singela e profunda prova de dúvida. Da mais cruel e angustiante. Esse é o paradoxo da falsa certeza absoluta. Pode acontecer no campo do exercício profissional (duas pessoas que trabalham juntas, que têm certeza absoluta de que estão de acordo em sua tarefa, mas não ousam falar sobre isso), no campo da luta política (quando um acordo entre companheiros fica no campo da troca de olhares, e não se coletiviza opiniões), no campo do flerte, da paquera e do amor (quando a paixão não declarada fica evidente para ambos, mas ninguém diz nada). Todas e todos temos certeza de que isso acontece, ninguém duvida disso. Todo mundo sabe que isso vem de algum lugar, mas o que a gente ganha se contentando com o fato de não saber de onde isso vem?

Mas mais importante do que saber a origem da falsa certeza absoluta, é lidar com ela: ou seja, não se contentar com ela, e buscar sua superação. Muitas palavras podem ser usadas para evitar as palavras que a falsa certeza absoluta busca dispensar, e o segredo talvez seja identificar quais palavras nos mantêm na pré-tarefa, e quais nos confrontam com a depressão de, talvez, descobrir que estávamos absolutamente errados. Só há movimento quando corremos o risco de descobrir que erramos. Só o risco da decepção pode nos levar para além. Caso contrário, ficamos no estereótipo, na redundância, fechados em um círculo vicioso perigosíssimo. E assim como palavras podem nos prender nesse caminho de correr atrás do mesmo rabo (ficar se movendo em estado parado, no mesmo lugar), outras palavras podem nos colocar num movimento em espiral, que nos leve para além dali, e nos tirar da prisão das palavras estereotipadas, das palavras que fugiam da verdadeira questão, das palavras transparentes e sem opacidade da pré-tarefa. A falsa certeza absoluta tem um frio na barriga que é gostoso, mas ficar nela pra sempre é perder boa parte do movimento da vida, e é uma forma de resistir à mudança (não tô dizendo isso sozinho, tô chamando o Pichon pra falar comigo!). Portanto, o desafio para desafiar a resistência à mudança pode ser resolvido quando buscamos outras palavras. Por exemplo: "Eu entendi errado, ou você sente por mim o mesmo que eu sinto por você?". Tem tudo pra dar errado. Mas tem tudo pra dar certo. Uma aposta.

Talvez seja isso que diferencie o roubo e o furto, no nosso campo semântico. Ambos são alternativos à via burocrática de construção de confiança, mas o furto é ainda mais contido, magnético, pelas beiradas, ótimo para conquistar terreno, enquanto o roubo é à mão armada, busca outras palavras e detona qualquer possibilidade de falsa certeza absoluta. Acho que foi isso que essa insônia me ensinou: o roubo não deixa dúvidas.


beijinhos de maracujá!

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