quarta-feira, 11 de abril de 2012

Por uma metodologia vigotskiana na leitura da psiquiatria de Pichon-Rivière!



Esse tipo de idéia é fruto de hidratações capilares no meio da madrugada. Para a galera acostumada com textos mais informais no blog, me desculpe, mas tenho NECESSIDADE de entrar na Hard Science agora:

Pronto! O assunto é o seguinte: a psicologia e a psiquiatria brasileiras e latino-americanas estão carentes, a meu ver, de uma formulação teórica que a ciência deve aos movimentos sociais da Luta Antimanicomial e Antiproibicionista. Essa formulação é uma leitura metodológica da psiquiatria de Pichon-Rivière a partir da psicologia materialista histórico-dialética. Este texto pretende ser uma primeira aproximação a esta formulação, e um marco social da necessidade de sua construção. Pode ser que daqui a pouco abandone esse caminho que começo a traçar aqui, mas acredito que prosseguirei nele, e convido quem mais, no campo da ciência, da aplicação prática ou da militância (ou das três coisas) que queira trilhar esse caminho junto conosco. Fiz opção pela escola soviética da psicologia, principalmente nas contribuições metodológicas de Vigotski, porque entendo que são os trabalhos que mais têm condições de nos permitir levar Pichon para além do ápice do seu avanço na construção de uma psiquiatria social e militante.

Em primeiro lugar, preciso dizer de qual Vigotski estou falando. O compreendo, dentro do cenário da psicologia brasileira e latino-americana, a partir das contribuições de um autor da pedagogia histórico-crítica (cujo principal expoente é Demerval Saviani). Este autor a que recorro se chama Newton Duarte, e uma obra dele é, a meu ver, obrigatória para qualquer pessoa que queira falar sobre qualquer conceito de Vigotski hoje, seja para discordar ou para concordar. A obra se chama "Vigotski e o 'Aprender a Aprender': Crítica às Apropriações Neoliberais e Pós-Modernas da Teoria Vigotskiana", e faz uma sistematização incrível e muito necessária das diversas formas através das quais, em nome de Vigotski, o projeto da psicologia soviética (incluindo aí também o próprio Vigotski) foi distorcido acidental ou intencionalmente. É um texto da pedagogia, mas é também nosso, da psicologia, e faço uma ressalva desde já para que entendamos a grandeza dessa obra: Newton Duarte deixa claro que não faz questão de trabalhar pormenorizadamente o conceito de Pós-Modernismo, e por isso faz uma grande generalização no trabalho dele. Não convém dizer que ele fez o certo ou o errado, mas eu aponto para um outro tratamento marxista para essa temática, apesar de achar que isso não tira em nada o mérito da crítica que o livro faz. Eu aponto para a necessidade de uma crítica séria e dialógica (ou seja, com rigor metodológico no materialismo-histórico dialético) das mais diversas teorias ditas pós-modernas, para que saibamos o que não se sustenta teoricamente, sem perdermos o diálogo com o que essas experiências teóricas produziram. Sinto pobreza no pensamento dialético quando se trata um conjunto tão amplo e variado de teorias como uma coisa só, e a rotula de pós-modernismo, encerrando o debate como se essa coisa "pós-modernismo" fosse um mal do qual o marxismo vai livrar o mundo. O projeto da crítica marxista não é esse e nem deve ser. Não é assim que um pensamento crítico deve operar. Mas a categorização do Newton Duarte é declaradamente por ele avaliar que não era prioridade se deter numa conceituação mais aprofundada de pós-modernidade, e ele inclusive apresenta uma posição, da qual concordo parcial e quase que totalmente, de que o paradigma pós-moderno é expressão acadêmica do mesmo conjunto de interesses que se expressa politicamente no neo-liberalismo (os interesses da atualidade do Capital). Assim sendo, Newton Duarte vai dizer que os interesses por trás da psicologia da escola Soviética, que teve como principais expoentes Leontiev, Lúria e Vigotski, são os interesses classistas do Trabalho, opostos aos interesses do Capital na luta de classes, e portanto, é compreensível que ao longo da história Vigotski tenha sofrido censuras, edições, interpretações superficiais, distorcidas e muitas vezes mal intencionadas de sua obra. A leitura dessa obra de Newton Duarte é obrigatória para pôr essa variação de interpretações de Vigotski em cenário, e forçar que definamos a qual Vigotski nos filiamos em nosso trabalho, e eu entendo que Newton Duarte ajuda a elucidar alguns equívocos para que cheguemos ao Vigotski, na sua fonte, com mais clareza da intencionalidade de sua obra.

Em segundo lugar, sugiro as leituras de um autor que eu considero que exemplifique muito bem qual prática acadêmica vigotskiana defendo e sigo. Esse autor se chama Achilles Delari Jr., e eu deixo aqui um link onde uma série de artigos e textos seus podem ser lidos: 
http://www.vigotski.net/casa.htm#textos A referência nesta obra de Newton Duarte e na obra completa de Achilles Delari Jr. (na verdade, na obra completa dos dois), nos instrumentaliza para sabermos como usar Vigotski, mas deixo claro desde já que a responsabilidade do que farei com Vigotski a partir daqui é minha e não destes dois autores. As suas obras são apenas ferramentas das quais lanço mão para meu trabalho sobre a obra de Vigotski.

Da mesma maneira, posto tudo o que foi dito acima, lanço mão da obra de Vigotski como ferramenta para trabalhar sobre a obra de Pichon. Então em terceiro lugar sugiro uma leitura que pode nos ajudar nos próximos passos desse percurso aqui iniciado. No Brasil a editora Martins Fontes lançou uma obra de Vigotski com o nome "Teoria e Método em Psicologia", e esse livro, coletânea de textos, pode nos dar muita noção do quão grandiosa é a lucidez e a consistência metodológica de Vigotski, e do quanto ele trabalhou para nos deixar armadas e armados de uma práxis científica crítica em psicologia, mas ao mesmo tempo profundamente teórica, conceitual, sistematizadora e passível de diálogo com as mais variadas formas que a psicologia toma. Em um longo texto presente nesta publicação, Vigotski fala "Sobre o sentido histórico da crise da psicologia", e vai debater sobre a necessidade de constituirmos uma psicologia geral, espaço de síntese entre as diversas produções de saber dentro da ciência psicologia. A unidade dessa nossa ciência faz parte do projeto metodológico vigotskiano, tanto quanto a crítica como prática dela. Por isso sugiro a princípio as noções que Vigotski traz em outro texto do mesmo livro já citado, cujo nome é "O Método Instrumental em Psicologia". Acredito que o conceito de Ato Instrumental é um bom lugar para se começar a pensar conceitualmente a teoria da constituição da loucura no argentino Pichon-Rivière. E se o que estou propondo aqui funcionar na prática, pretendo escrever uma continuação deste texto, e aprofundar nos conceitos vigotskianos que nos serão úteis.

É preciso deixar claro, nessa segunda parte deste texto, que eu não conheço tanto a obra de Pichon quanto a de Vigotski, e preciso reconhecer essa limitação. Esse texto que escrevo é uma contribuição de alguém que está COMEÇANDO a ler mais sistematicamente o que Pichon deixou, e isso impõe, é claro, uma incerteza no percurso a ser trilhado a partir daqui. Mas pra mais uma vez deixar referência bibliográfica, esse texto é escrito embasado na leitura das primeiras páginas do livro "Teoria do Vínculo", que também foi publicado no Brasil pela Martins Fontes. Conforme eu me aprofunde na leitura deste e de outros livros de Pichon, vou escrever novos textos como este aqui no blog, para quem quiser construir esse projeto junto comigo.

Fica evidente para mim que Pichon rompe parcialmente com a psicanálise, ao afirmar que uma teoria de constituição da experiência psíquica tem três dimensões bem claras para ele, apesar de dialeticamente articuladas e indissociadas. Em suas próprias palavras, "Existem três dimensões de investigação - a investigação do indivíduo, a do grupo e a da instituição ou sociedade -, permitindo três tipos de análise - a psicossocial, que parte do indivíduo para for; a sociodinâmica, que analisa o grupo como estrutura; e a institucional, que toma todo um grupo, toda uma instituição ou todo um país como objeto de investigação. (p. 2)". Aqui Pichon claramente diz que a psicanálise não dá conta de tratar sozinha destas três dimensões, porque o fenômeno da loucura e da constituição psíquica também contém elementos pertinentes ao campo das lutas sociais. Porém ele vai dizer que as lutas sociais também não dão conta de compreender o fenômeno da loucura sem os elementos oriundos da psicanálise. A ruptura com a psicanálise é parcial, e acho que apesar de não podermos jogar no lixo as contribuições psicanalíticas, podemos levar a psiquiatria de Pichon para um estágio ainda mais autônomo em relação à psicopatologia psicanalítica. O caminho metodológico pra isso, como já disse, acredito ser vigotskiano/marxista, mas isso pede a compreensão dos fenômenos psiquiátricos como decomponíveis até a menor unidade possível, que é a meu vero próprio ato instrumental de que Vigotski fala.

Falando rapidamente acerca do assunto. Vigotski acredita que existe uma diferença entre a decomposição até a unidade e a decomposição até o elemento. Decompor a água até a menor unidade possível e decompô-la até a molécula de H2O, o que permite encontrar ainda afecções, características, próprias da água. Decompôr a água para além disso nos leva aos elementos, Hidrogênio e Oxigênio, mas perde-se aí a unidade, e o elemento sozinho não explica as características do fenômeno estudado como a unidade nos permite. A unidade de um fenômeno psicológico seria aquilo que nos permite conceituar diferentes traços da formação psíquica sem perdermos suas características e nos perdemos numa análise meramente elementar. O ato instrumental é uma unidade da psiqué, segundo Vigotski, que é composta por três elementos, análogos aos do processo de trabalho descrito no capítulo V do Capital de Marx, porém voltados para a transformação interna do homem, e não para a transformação do mundo como o trabalho classicamente definido. Esses três elementos são o estímulo objeto, o estímulo instrumento e a resposta. A novidade em relação ao esquema estímulo-resposta clássico, Pavloviano, é justamente a presença desse estímulo instrumental, que age não sobre o estímulo objeto (sobre o mundo), como seria no trabalho técnico, mas sim sobre a própria resposta (sobre a psiqué do sujeito), no caso do ato instrumental. Com um pouco de clareza do texto Vigotskiano sobre o tema, dá pra entender que ele está esboçando conceitualmente um método de análise possível de aplicação a qualquer  fenômeno psicológico humano. O ato instrumental é o que permite à psiqué humana existir dentro da história, dentro do social, já que é o estímulo instrumento, ou instrumento psicológico, que permite inclusive a mediação entre consciências (intrapsicológica).

Ponto. Aqui Pichon e Vigotski se encontram. Aqui o conceito elementar de instrumento psicológico (que só funciona em unidade se articulado com os outros dois elementos do ato psicológico) se torna o estímulo que permite o vínculo presente tanto na análise psicossocial, na sociodinâmica quanto na institucional. Um desafio que devemos seguir, é entender empiricamente como cada um desses três tipos de atos instrumentais se dão. O instrumento psicológico é a ferramenta através do qual todo ser humano se relaciona com o mundo, consigo mesmo e com outros seres humanos. Através dele, em suas diversas nuances, é que é possível o vínculo do indivíduo com o objeto, com o outro, de que tanto Freud quanto Pichon falam. Estou aqui fazendo um exercício teórico até muito prolíxo, por ser uma aproximação inicial, mas a utilidade de Vigotski na leitura de Pichon não é, a meu ver, apenas na revisão de literatura. Fica claro, já nas primeiras páginas da "Teoria do Vínculo", que a principal potência de Pichon é na observação empírica do sujeito na sua vivência grupal, seja em qual nível de análise for. Entender a indissociabilidade entre individual, grupal e institucional dá a Pichon uma radicalidade rica para que observemos a loucura hoje, dentro do paradigma da Reforma Psiquiátrica (e consequentemente, dentro da investida manicomial da psiquiatria conservadora), e entendamos como ela se constitui na relação com a atualidade dessa sociedade. É preciso levar a lucidez de Pichon para dentro dos CAPS, dos Hospitais Gerais, das Residências Terapêuticas, mas também dos Hospitais Psiquiátricos, das Comunidades Terapêuticas, das Clínicas particulares. É preciso levar Pichon para as ruas, para dentro da família patriarcal, é preciso levá-lo para o feminismo, e levar o feminismo para ele, ou seja, levantar os temas candentes hoje, para entender como o humano enlouquece em 2012. Vigotski nos ajuda a preparar Pichon teoricamente para essa empreitada empírica posterior, para que ela seja através do método materialista histórico-dialético, e para que não precisemos ficar pra sempre recorrendo às teorias alemãs, americanas e francesas pra entender a realidade da loucura brasileira e latino-americana.

Sei que deixo muitos buracos neste texto, mas nem me desculpo por isso, não tinha como ser diferente, são aproximações iniciais. Para quem quiser preencher lacunas nesse trabalho, tanto no bibliográfico quanto no empírico, basta entrar em contato. Esse caminho vai ser mais agradável de trilhar e mais produtivo se trilhado em boa companhia.

beijinhos de maracujá!

Um comentário:

  1. Eu, como a Maria, também li Zé, vou ficar pensando nisso. Vigotski tem muitas "camadas", já falei noutro lugar que sinto a falta de um tratamento Vigotskiano sobre o social como grupal e como institucional, embora o social apareça como pessoal, como intersubjetivo, e como luta de classes. Nesse sentido há lacunas a serem preenchidas no autor bielo-russo. Por outro lado a discussão sobre as unidades de análise merece reconhecimento quanto a complexidade de se eleger a unidade correta para a gênese (e patogênese) da consciência... "ato instrumental"? "significado da palavra"? "vivência"? Faço um adendo sobre a importância da lei genética geral do desenvolvimento e do tema do drama como modos de pensar as transições entre os diferentes modos de ser do social, saudáveis e/ou patogênicos (e sempre há algo de cada um dos dois, não?). E também é importante lembrar que historicamente as prioridades práticas e conceituais de Vigotski foram mudando, seu pensamento foi se desenvolvendo, como não poderia deixar de ser. Vou pensar mais, qualquer hora eu escrevo uns apontamentos e te envio. Parabéns pela iniciativa, já não era sem tempo.

    Achilles,
    Umuarama, 12 de abril de 2012. 23h29.

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