Na invenção de uma psicologia contra-hegemônica e também de uma psicologia dialética, é preciso considerar a importância do papel, para TODA E TODO estudante de psicologia, SEM EXCEÇÃO, de uma formação generalista, tanto quanto de um acesso aprofundado aos temas que lhe convenham durante a formação. Um curso de psicologia não pode ser apenas o curso de uma ou de algumas poucas teorias, em que semestre após semestre as aulas se dedicam a te ensinar sempre um pouco mais da mesma coisa, com uma ou outra disciplinazinha que traz fragmentos de outros campos teóricos, de forma desconectada, resumida e pobre. Por outro lado, também não convém uma formação completamente enciclopédica, em que aprendemos um pouquinho de cada coisinha, semestre após semestre, disciplina após disciplina, e saímos sabendo de tudo na profissão, mas sem consistência em nada. Mas como devemos nos portar diante deste impasse?
Na construção de uma psicologia contra-hegemônica brasileira, assim como na invenção de uma psicologia dialética (projetos diferentes, mas que não precisam andar muito distantes), a superação dessa contradição passa pela superação de outra: a dicotomia entre espaço intra e extra sala de aula.
Tolice achar que as aulas sozinhas formam um corpo para o exercício revolucionário e emancipador da psicologia. Igualmente tolo achar que as aulas são dispensáveis. O estudo de caso sobre o qual formulo minhas teses, o curso de psicologia da UFES, tem uma singularidade diante disso: uma altíssima produção acadêmica, oficial e extra-oficial, oriunda do esforço, da proposta e ou da iniciativa de estudantes. Grupos de estudo, projetos de pesquisa e extensão, grupos de intervenção, eventos, debates, atividades que não ocorreriam apenas por iniciativa docente do curso, e que permitem a parte considerável do corpo discente a formação em áreas e teorias que jamais seriam tratadas apenas em sala de aula.
Ocorre porém, que ainda é muito espontânea, no caso da UFES, a produção de grande parte deste conhecimento extra sala de aula. O desafio hoje é fazer com que essas atividades sejam parte do PROGRAMA do curso, incentivadas e reconhecidas como tal, e não apenas um apêndice, uma coisa menos séria, ou algo que ocorre extra-curso, como muita gente (entre estudantes, professoras e professores) considera. Não é demais ressaltar que, de forma alguma, a inclusão da produção hoje espontânea num patamar de formação planejada no projeto do curso, deve tutelar e aparelhar esses processos. Isso é um risco quando não se muda a concepção de que o curso é feito apenas por docentes. O projeto de um curso deve ser constante e cotidianamente formulado, sob vias tácitas e também institucionais, por todas e todos que vivem o curso, e não apenas pelas professoras e professores universitários. A hierarquização professor-aluno na gestão do processo educacional é uma chaga adultocentrista que ANULA a possibilidade de gestação de uma psicologia contra-hegemônica.
Por outro lado, temos no caso da UFES, e sei que no Brasil inteiro também, uma quantidade razoável de aulas simplesmente ruins. A experiência intra sala de aula é INDISPENSÁVEL, não caio na estratégia pós moderna de esvaziamento do espaço escolar formal. A sala de aula é um formato extremamente ruim em sua atualidade, mas não resolveremos esse impasse descartando o formato como um todo, o desafio que se impõe a nós é o da reconfiguração. Claro que aqui, mais uma vez o adultocentrismo da hierarquização professor-aluno intervém. Uma experiência educacional gerida com base numa autoridade superior docente, e numa produção de silêncio por parte dos corpos que estão vivendo o processo de formação, obviamente redundará em uma formação teórica pouco consistente, fundada na transmissão anti-dialética de um saber cristalizado, e não no diálogo que constrói essa transmissão simultaneamente como invenção, a partir do conhecimento já existente, de um conhecimento adequado às novas lutas que surgem na constante busca por emancipação. A estrutura da sala de aula, dos programas das disciplinas, das avaliações, da vida como a vivemos no eixo "ensino" do tripé universitário, forja um conhecimento a serviço da hegemonia.
A crueldade de levar pessoas a se idiotizarem numa formação limitada à sala de aula é tão grande quanto a esparrela, a farsa de que a libertação dessa crueldade se dá substituindo o lado de dentro pelo de fora. No entanto, dois apontamentos são indispensáveis: 1) Pessoas não se inutilizam no exercício da profissão por viverem essas duas experiências extremas limitadas, não dá pra afirmar, anti-dialeticamente, que a formação puramente intra ou a puramente extra sala de aula anulam por completo a possibilidade de construção de um exercício dialético e contra-hegemônico da profissão. Afirmar isso é dizer que este é o único fator determinante da qualidade da formação, o que é uma visão obviamente limitada e mentirosa, e que fecha o nosso horizonte para os outros tantos campos tão possíveis de disputa como este, abordado por esta contribuição; 2) Não caiamos no equívoco de achar que dialética se produz com adição simples. Não basta fazer um "interacionismo" entre o intra e o extra sala de aula. Ambos precisam ser radicalmente transformados, e precisamos decidir (no exercício da experiência educacional) o que queremos com cada um deles, para que no nosso projeto de formação, coloquemos cada um em seu devido lugar nessa articulação. Para isso, precisamos entender mais aprofundadamente a realidade de cada um destes espaços, ou melhor, as várias realidades, porque há uma diversidade de experiências intra, e uma diversidade de experiências extra.
Não se trata de escolher uma forma em cada um desses espaços e hegemonizá-los, anulando as outras formas. A diversidade é bem vinda, ela é fruto da produção cotidiana da experiência educacional, pautada nas demandas da conjuntura vivida por nós. No entanto, ela não pode estar descolada de uma visão global da sociedade na qual essa formação se dá, e na qual essa psicóloga ou psicólogo atuará. Não se trata da diversidade pela diversidade, como se ela, em si, encerrasse um bem. A hegemonia, o modo de ser dominante, reformista e conservador da psicologia, também se faz com diversidade. A diversidade não é fim, é meio. A finalidade é a construção de uma psicologia revolucionária.
Por fim, é preciso denunciar a visão diversista da psicologia. A gente aprendeu a achar bonito que a psicologia seja diversa, mas hipocritamente a gente não conversa, a gente se odeia, as teorias só se contactam na agressão, na queimação mútua. A ciência sustentada nessa metodologia de diálogo será obviamente eficiente em contribuir para manter um sistema de exploração. O caminho para a superação deste problema é a elaboração de metodologias para o diálogo entre os diversos campos de saber que compõem a profissão. A psicologia não é diversa por uma dádiva, mas como fruto de uma história confusa, atropelada e repleta de incompetências na formulação de uma ciência a serviço dos interesses da humanidade. Eu recomendo que leiam o texto de 1927 de Lev Vigotski chamado "O Significado Histórico da Crise da Psicologia: Uma Investigação Metodológica", assim como uma série de textos nos quais Vigotski nos alertou desesperadamente que a psicologia caminhava para um abismo. Nós naturalizamos esse abismo que distorce as potências de nossa profissão, e o enxergamos como uma beleza. É lindo ser diverso, a psicologia é uma profissão múltipa, e sustentamo-nos nessa hipocrisia pra anular qualquer diálogo dentro da nossa formação e do exercício da nossa profissão.
Resumindo o que tenho a propôr diante disso tudo. A universidade precisa ter um projeto de curso, que ainda deve começar a ser construído (não é esse projeto que existe por aí nos cursos de hoje, em absoluto), mas que não joga no lixo o que os projetos atuais de curso têm a nos oferecer. Essa construção deve ter voz igual de estudantes e docentes, resguardadas as diferenças que não podemos calar (o percurso que faz do professor um professor e a potência inovadora do estudante, o vínculo mais intenso do docente com a instituição universidade e a maior liberdade do estudante em função desta), mas essas diferenças devem ser usadas em favor da democracia, e não como justificativas para uma hierarquização tradicionalista. Essa construção precisa conter um estudo aprofundado das diversas experiências intra e extra sala de aula, elencando os diversos temas e as diversas teorias abordadas, para pensar as disciplinas como espaços de uma formação generalista, que permita ao estudante o contato com a diversidade dessa profissão, dando base para o diálogo e para a disputa fraterna, incentivando o estudante à produção de sínteses. As escolas teóricas precisam deixar de ter como núcleo as disciplinas (que devem ser generalistas) e precisam habitar os espaços intra e extra sala de aula. Esses espaços precisam ser incentivados (inclusive através dos debates nas disciplinas em sala de aula, e construídos tanto por docentes quanto por discentes, e também em iniciativas conjugadas. Os horários de aulas precisam incentivar a participação nos projetos de pesquisa e extensão, nos grupos de estudo, nos eventos, debates, nas atividades culturais, artísticas, nos espaços de vivência e na participação no movimento estudantil e outros movimentos sociais. As questões polêmicas de um curso de psicologia não podem em hipótese alguma ser resolvidas através da via disciplinar, moralista, ou algo assim. É preciso haver diálogo para a transformação da situação, que pode tanto passar pela mudança do comportamento questionado quanto pela mudança do questionamento, ou ambas as coisas. Afirmar isso a priori é, mais uma vez, profundamente anti-dialético. Um projeto contra-hegemônico de curso, ou seja, um projeto de curso que forma profissionais de psicologia comprometidas e comprometidos com uma psicologia contra-hegemônica, revolucionária, transformadora, libertadora e emancipadora, não pode ser um projeto construído durante um período e, depois de pronto e aprovado, engessado em si. Ele precisa (como método, como meio), conter em si as ferramentas de seu próprio questionamento, de sua própria avaliação. Um projeto de curso que não pressuponha ferramentas para sua transformação, para a adesão das novidades oriundas da vida do curso, está ignorando que o processo de formação humana é um processo histórico. No entanto, não se trata de uma renovação que desfigure e deforme seu princípio fundante, que é a produção de uma psicologia transformadora.
Precisamos urgentemente EXIGIR, na UFES e por todo o Brasil, que nossos cursos se submetam a uma grande transformação nos nossos projetos. Sou da opinião de que a ferramenta que temos para sincronizar (o que é diferente de hegemonizar) esse processo é a CONEP, Coordenação Nacional de Estudantes de Psicologia, a entidade estudantil nacional dos estudantes de psicologia. Precisamos nos juntar dentro dela, e a melhor ferramenta para isso se chama Centro Acadêmico, ou Diretório Acadêmico. São dois tipos de ferramenta, que se complementam: a entidade nacional CONEP e a entidade local (no nosso caso o CALPSI-UFES, Centro Acadêmico Livre de Psicologia "Maria Clara da Silva"). Por que esse trabalho pede dois tipos diferentes de instrumentos? Porque temos muito o que aprender, na luta pela criação do projeto local em nossa universidade, com as lutas ocorridas em outros cursos por todo o Brasil, mas isso não pode se tornar a criação de um projeto único, que ignore as demandas de cada local, na produção de seu curso. A CONEP pode ser uma ferramenta incrível, se a ocuparmos adequadamente, para que o CALPSI-UFES possa trocar com vários outros CA's e DA's do Brasil inteiro, respeitando a autonomia de cada curso, e podemos forjar um projeto geral, que inclua a diversidade dos inúmeros projetos particulares. Na criação de projetos de curso, há lutas que deverão ser travadas dentro de cada universidade, mas ao mesmo tempo, outras lutas dizem respeito à política nacional da educação superior ou da profissão, e a CONEP é indispensável nesse caso.
Por isso dedico ao CALPSI-UFES e à CONEP esta singela contribuição, que é apenas a primeira do blog Artifício Socialista para a construção de uma psicologia Contra-Hegemônica, que é uma luta política contra a psicologia conservadora, reformista que está aí hoje, na hegemonia de nossa sociedade. Essa contribuição é também para a construção de uma Psicologia Dialética Brasileira, que é uma formulação teórica ainda emergente, e que será apenas mais uma teoria dentro dessa psicologia contra-hegemônica, mas isso é uma outra história.
Se alguém se interessar por esse assunto e quiser sugerir, criticar, elogiar ou mesmo escrever outras contribuições como essa junto comigo, entrem em contato. Precisamos pôr nossas idéias no papel, e depois em prática.
beijinhos de maracujá!
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