sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

ABC - Atitude, Burocracia e Cigarro



Eu não consigo sair daqui...

Preso por esse medo das irresistíveis novidades, eu não tenho coragem de dizer que te amo, e não tenho coragem de largar tudo e sumir no mundo. Eu continuo indo todos os dias nos mesmos lugares, batendo os mesmos carimbos, ignorando desconhecidos nas calçadas do mesmo jeitinho, tomando café na mesma padaria, fumando cigarros nas mesmas janelas, lendo os mesmos livros, já lidos tantas vezes. Às vezes leio algum livro novo, pra matar um pouco a vontade de fugir, mas em geral eu leio sempre os mesmos, pra saber citar bem os "Segundo Fulano (1984)" e os "De acordo com Beltrano (1917, p. 112)". E também porque ler muita novidade me faz pensar demais em você.

Hoje fui a uma floricultura, comprei uns amores-perfeitos. Um bom trocadilho botânico. Vou colocar na janela do meu quarto, e cuidar como se fosse um filho. Tenho me sentido tão sozinho, que flores são bem vindas. Eu gostaria de um dia te trazer pra conhecer a minha casa, acho a decoração de bom gosto, nem muito descuidada, nem muito estravagante. Acho que iria te causar boa impressão. Mas eu não tenho coragem de dizer mais do que "oi, oi!", na mesinha do café. Já tive vontade de ir contigo pra janela do escritório, quando você vai fumar, ter a sua companhia durante um cigarro já me alegraria demais, mas nem isso eu tenho coragem. Morro de medo de você apagar o cigarro no início e se retirar, enojada da minha presença. Não acho que tenha assim tanto nojo de mim, mas por mais que eu fique com mais vontade de fumar toda vez que te vejo levantar de sua mesa pra ir até a janela, abaixo a cabeça e digito mais, e carimbo mais.

Tenho vontade de te tirar pra dançar. A vida é um grande baile colegial, como se dizia antigamente. As menininhas e os menininhos vão sonhando com seus romances, alguns com seus primeiros beijos, outros com suas primeiras transas, outros com suas primeiras danças. Eu gostaria de dançar contigo, corpo colado, rosto colado, sentindo a sua respiração e querendo parar de respirar, com medo de que você sinta a minha e me ache afobado demais. Mas nem esse medo eu sinto. No transtornado baile da vida, não tenho coragem sequer de te tirar para dançar. Mas posso sentir na palma de minha mão direita a maciez de suas costas, e do tecido do seu vestido, enquanto sinto na esquerda a maciez da pele da tua mão. Se você sussurrar qualquer coisa, eu ouço, e minha respiração fica ainda mais descontrolada, e eu agradeço a Deus por não estar vendo seus olhos, nem seu sorriso. E só de pensar nisso, lembro deles, com o rosto colado no seu, e posso perder o ar. E você vai se arrepender de ter aceitado o meu convite. É melhor não tentar.

Eu queria colocar uma mochila nas costas, ter um violão pra tocar nas estações de metro, nas ruas movimentadas, e sair sem destino, sem calcular minha viagem pelas moedas e notas que levo. Ir de cidade em cidade, conversando com pessoas desconhecidas, fazendo amizades, vendendo poemas e inventando novos amores. "Um amor em cada porto", como disse certa vez a menina Adriana, com seus belos olhos marítimos. Viver sem tantas certezas, sem tantas garantias, sem tanta estabilidade. Afinal, quais são as certezas que eu tenho hoje? Todas elas, a não ser as certezas do meu cotidiano, são ilusões de que eu estou no controle. Não estou, e não estaria menos no controle se perdesse o rumo. Aqui, repetindo o caminho diário de minha casa até meu trabalho, não estou livre das vontades do destino, não estou mais ao sabor do vento do que viajando por aí. Mas sinto no meu peito que tenho o controle. E continuo fugindo descontroladamente, e mentindo pra mim mesmo que cair no mundo é que seria fugir.

Quando eu era jovem, tinha uma banda. Todos éramos punks e viramos burocratas. Nós achávamos que iríamos mudar o mundo, mimeografando fanzines e berrando contra o preconceito e a injustiça. A gente xingava a polícia, bebia Vodka barata e Cantina da Serra, fazia sexo na rua e pichava paredes por toda a cidade. Hoje eu vejo, da janela do ônibus, a cidade rabiscada por pessoas inconformadas, e me pergunto o que essas pessoas serão no futuro. Será mesmo que o destino de toda alma indignada é se acomodar? Será mesmo que é natural, esse discurso tardio de "estou fazendo a minha parte por um mundo melhor, aqui no meu trabalho"? Quando foi que a filosofia virou burocracia? Quando foi que o pensamento virou adoração a nomes com gordos lattes, e a criticidade virou adequação às normas de publicação? Eu fazia fanzines, hoje eu tenho medo até de amar.

Hoje, eu vim pro escritório decidido, vou ficar com o cigarro na orelha, e com o isqueiro no bolso da camisa. Quando eu te vir levantando e caminhando em direção à janela, vou levantar sem contar até três, pra não ter tempo de desistir. Vou fingir que não lembro o seu nome, e depois vou falar do seu signo, e a gente marca de se encontrar de novo ali, na janela, no próximo cigarro. Vou voltar pra minha mesa e ficar morrendo de vontade de fumar. Não pelo cigarro, por você. Depois de uma semana, vou soltar no ar que escrevo, pra você insistir e tentar me convencer a te mostrar algum de meus poemas não publicados. E depois a gente vai ter a idéia casual de sair pra tomar um suco, tomar uma cerveja, tomar um taxi, e depois de não-sei-quantos-anos-sem-coragem, finalmente eu vou poder chupar seus seios e você fazer carinho na minha nuca, e no dia seguinte você vai rir pra mim de longe, e eu vou rir de volta, e pegar meu cigarro e ir correndo pra janela.

Vou pichar seu nome nas paredes da cidade, vou escrever por todo canto "Eu te amo, e morte ao capital!", vou mimeografar um poema com seu nome, e distribuir nos terminais. E a gente vai dançar um rock'n'roll da Rita Lee... Tô só esperando você levantar daí, preu ir pra janela! E depois, a gente vai cair no mundo!

beijinhos de maracujá!

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