Meu peito, canino, se seduz com facilidade, se seduz por qualquer coisa, qualquer pessoa, qualquer lugar e qualquer ocasião. Eu sou tão fácil, tão dado, tão assanhado. Qualquer piscadela me convence, me captura. No entanto, por fora eu sou felino.
E cada vez mais, felino estou. Aprendi o jeito felino de demarcar território, já que a agressividade territorial dos cães me incomoda. E aprendi o jeito felino de lidar com a sedução: frio. Como todo fixo de ar deveria ser, aliás.
O hedonismo dos cães os põe em perigos, porque é um hedonismo burro, meio cego, entregue a tudo e aos prazeres do acaso. O dos gatos é esnobe (entre o fixo de água e o fixo de fogo). Sim, felinos são vaidosos. Não é a toa que chamam àquele signo "Leão". Não é a toa que elogiamos a beleza de alguém dizendo que está "gato", ou que é "gata". No entanto, quando alguém apronta demais: "cachorro!". Não que os cães sejam, mal intencionados, só são atrapalhados demais. A domesticação os distanciou do que havia de forte em seus parentes selvagens, mais do que separou os felinos. E é aí que eu gosto das cadelas de rua. Porque territorializar fica para os cães, que por sinal também são péssimos no trato com as cadelas. E elas, atraindo sem o querer, são as verdadeiras donas das ruas. Rainhas absolutas da podridão, da baixeza e da falta de pudores e bons costumes. Cadelas (em especial as no cio), falam muito de mim, pelo simples fato de existirem. Venho de Feu Rosa, terra de madrugadas caninas, e sou um habitante das madrugadas de Feu Rosa: sei como as noites são outras quando as cadelas estão no cio. A reação delas e deles a nós, humanos, é completamente diferente. Eu, como humano bom observador, sinto os sentimentos por trás de tudo isso, e me identifico com as cadelas no cio.
Mas cada vez mais, felino estou. Cada vez menos me pauto no altruísmo excessivo que sempre me balizou, cada vez mais, aprendo que se eu não pensar em mim de vez em quando, posso não estar de pé pra pensar nos outros daqui a pouco. Para o bem dos outros: pensar em mim.
Sou de muitas palavras, então decidi ficar mais calado. Tem gente para quem eu não preciso mesmo oferecer muitas palavras. Tem gente que não merece muito mais do que o meu silêncio. Que minhas palavras sejam cada vez mais raras, e cada vez mais vistas como um presente. Raro presente. E da mesma forma, mudar o jeito de ser muito carinhoso: se antes eu, canino, tinha carinho pra todo mundo o tempo todo, agora que estou mais felino, sou frio como um fixo de ar, e deixo todo mundo privado de meus carinhos. Para quem não o queria, será o incômodo a menos; para quem gostava dele, que faça por merecer. E assim que eu julgar que alguém merece meu carinho, serei o mais carinhosos dos hedonistas felinos. Tenho uma tonelada de carinhos guardados.
E tenho também muito desprezo. Eu passei mais de vinte e quatro anos tão pouco ciente da lição do desprezo, porque só conhecia dele o lado que eu sempre desprezei. Mas descobri com os felinos que tem um lado do desprezo que é um grande companheiro: existe no mundo muita coisa, pessoa, lugar e ocasião que merecem desprezo, até mesmo que precisam de desprezo. Descobri também que eu ás vezes preciso dispensar desprezo pra seguir por um bom rumo. Estou tomando um rumo felino.
Por fim: felinos guerreiam. Felinos são safos sem perder a elegância. Nós, cadelas no cio, sabemos sempre o que fazer, mas o fazemos sempre sintonizados com esse mundo mágico e assustador da podridão. Já os felinos, sempre têm um jeito muito ajeitado de lidar com as adversidades, e eu quero poder lançar mão dessas duas formas de me safar. De acordo com as conveniências, quero poder me ajeitar conectado às redes do submundo que eu amo, mas quero também poder sair, alinhado, aparentando nenhum arranhão, com pose, pompa e cabeça erguida. Quero apreender mais essa faceta da Vontade Guerreira, que é a faceta felina: ter sete vidas, sempre cair em pé, e nunca sair desajustado de um conflito. (...) Já nascemos livres!
Mas não queira adivinhar se eu sou gata ou sou cadela: eu sou trepadeira!
beijinhos de maracujá!