segunda-feira, 17 de junho de 2013

Pra que serve um ato de rua?



Não existe unidade de idéias. Mesmo com uma só pessoa, já há divergências de idéias, se você juntar duas ou mais pessoas então, aí sim é que a unidade de idéias se torna impossível. Para além de nossos conflitos internos, individuais, intrapsíquicos, há diferenças naturais: cada pessoa é diferente de cada uma das outras pessoas desse universo.

No entanto, não devemos olhar a inexistência de unidade como um problema, e sim como uma riqueza. A inexistência de unidade não quer dizer uma incompatibilidade das diferentes idéias. Existem idéias que são incompatíveis, mas existem idéias diferentes que podem se encontrar, dialogar, podem gerar novos processos.

Mas não é só de idéias que estamos falando. Estamos falando de gente, de corpos, de ações. Não existe unidade de gente, de corpos, de ações, mesmo numa coreografia aparentemente "perfeita", há minúcias de movimentos que só um olhar muito atento percebe. Nossa percepção tende a fechar gestalts, e a gente vê harmonia a mais, se a coisa for bem ensaiada, mas é impossível que dois corpos façam exatamente a mesma coisa. Mesmo uma coreografia tem minúcias.

E ainda assim, insisto, não devemos olhar as minúcias como defeitos. Corpos diversos, gentes diversas, ações diversas, são pontos que contam a nosso favor. E é exatamente sobre isso que eu vim falar:

No último sábado, 15 de junho, lá nas ruas de Cachoeiro, durante o SEGUNDO ATO Antimanicomial contra a Clínica Santa Isabel, eu olhava para cada pessoa, e via ali, na diversidade e nas minúcias dos gestos, a riqueza que nos fazia mais fortes. Algo nos unificava e algo nos diferenciava, não era uma manada de robôs, cada pessoa com sua singularidade, nas vestimentas, nos modos de andar, nos entendimentos sobre o que estavam fazendo ali, nas vozes que cantavam, nas formas de panfletar e abordar a população. E eu ficava prestando atenção na reação das pessoas que assistiam o ato e eram mobilizadas por ele. Era contagiante! As pessoas acolhiam quase sempre o que estava sendo colocado. Em um certo momento, já chegando no Centro de Cachoeiro, a gente cantava "A COPA, A COPA, A COPA NÃO ME ILUDE! EU QUERO É DEZ PORCENTO DO PIB PRA SAÚDE!", e eu via na cara das pessoas uma aprovação, uma satisfação, como se dissessem: "o que essa gente tá pedindo faz sentido". Vi diferentes abordagens de manifestantes a populares, algumas muito rápidas, outras mais conversadas. Me esforcei por escutar essas mais conversadas, pra saber o que minhas e meus colegas estavam dizendo pras pessoas na rua. Vai que eu descobria que estava no ato errado, que aquelas pessoas tão diferentes de mim, que marchavam comigo, não estavam lutando pela mesma coisa que eu!

A surpresa que eu tive foi a surpresa de me encontrar com o óbvio! Todo mundo dizia, com palavras muito diferentes, que queríamos fechar a santa isabel, quais o motivos para o seu fechamento, e quais serviços tínhamos a propôr para a sua substituição. Muita gente que a princípio queria nos dizer que era contra o fechamento da clínica porque "tem que ter um lugar pra essas pessoas ficarem", depois se davam conta de que a gente tinha propostas muito melhores do que um manicômio, diante desse problema. Nossas e nossos manifestantes, apesar de suas singularidades, tinham algo que dava unidade àquela marcha tão diversa: nós queremos uma REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL, nós queremos O FIM DA SANTA ISABEL, e contagiamos mais gente a querer essas coisas, ou ao menos a pensar sobre o assunto. Não é que mais gente vai pensar igual a gente. É que mais gente vai pensar diferente da gente, mas numa mesma sintonia.

É disso que se trata, no final. Pra que é que serve um ato de rua, pra criar afinidade entre os que marcham (ou seja, uma AFINIDADE INTERNA, entre as diversas pessoas do ato), e pra criar afinidade do ato com quem assiste (ou seja, uma AFINIDADE EXTERNA, com transeuntes, com quem recebe um panfleto, com quem escuta uma palavra de ordem, com quem assiste a cobertura da matéria na TV ou com quem lê um texto sobre atos, como este texto aqui!). A desmobilização tem desafinado muita gente, afinado muita gente em outros tons... Nós queremos achar uma afinação musicável pra instrumentos muito diversos. A metodologia do ato de rua é pedagogicamente muito eficaz. Claro que atos podem ser mal-feitos, podem ser irresponsáveis, podem mais atrapalhar do que ajudar. Mas só quem viu o sucesso do SEGUNDO ATO neste sábado que passou, sabe o que é um ato bem sucedido. Quem não foi porque não pôde ir, a energia de vocês estava lá conosco, obrigado pelo bom sentimento! Quem não foi porque não quis, perdeu, e eu só posso ter dó! Quem foi, teve uma oportunidade singular e linda de aprender a fazer história.

A micropolítica não é, de forma alguma, uma proposta esquizoanalítica de substituição da macropolítica. Se você acha que é isso, você ou não entendeu Guattari e Deleuze, ou está utilizando equivocadamente os conceitos deles pra justificar sua covardia. Não sou esquizoanalista, mas acho que o conceito de micropolítica tem muito a contribuir. Inclusive lutas macropolíticas que consideram a micropolítica são muito mais fortes! E no nível macropolítico, eu estou à esquerda, porque estar em cima do muro é estar do lado de quem oprime, de quem explora, é estar do lado de lá.

Fim da tergiversação sobre a micropolítica, vamos voltar para a psicopedagogia dos atos de rua. Por que eu escrevi tudo isso que você leu aí em cima? Porque, no Brasil inteiro e em várias cidades do mundo todo, tem gente indo pras ruas, fazer atos contra aumentos de passagens nos transportes públicos, contra a baixa qualidade nestes transportes, contra a lógica de lucro que impera neles, e contra a violência usada para conter quem luta por direitos, quem faz atos. Uma das canções que cantamos lá em Cachoeiro, dizia que "LUTAR POR DIREITO NÃO É CRIME! DEMOCRACIA DE VERDADE NÃO REPRIME!". Essa canção era tanto uma homenagem a Nercinda e Zulmira (se não sabe quem são, procure pelas histórias de Nercinda Heiderich e Zulmira Fontes, vale a pena!), quanto uma homenagem a toda a juventude que está indo às ruas, sendo reprimida e voltando às ruas em São Paulo, no Rio de Janeiro e em todo o Brasil.

Nesta segunda-feira, Vitória, a cidade que teve centenas e até milhar de vidas divididas entre ANTES E DEPOIS DE DOIS DE JUNHO DE DOIS MIL E ONZE, voltará a ter suas ruas tomadas pela juventude. E o blog Artifício Socialista não poderia deixar de contribuir com este texto aqui, para que os próximos tempos de luta sejam de bom aprendizado. Não paramos de escrever história. Estamos afinadas e afinados com o time da liberdade. Nossa humilde luta #AbaixoSantaIsabel vem deixar parte do nosso acúmulo para o novo ciclo de lutas que agora se abre! Muitas e muitos militantes antimanicomiais também estarão nas ruas contra a repressão e por qualidade no transporte público. Assim como a Luta Antimanicomial, estas também são lutas por direito de acessar a cidade, de gerir a cidade, de viver a cidade. POR UM MUNDO SEM ROLETAS, POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS, PARA ALÉM DO CAPITAL! Amanhã às dezessete horas, a concentração na UFES é para mais um ATO.

E como eu já disse acima, atos não geram unidades de idéias, nem de corpos, nem de gente, nem de ações. Atos afinam diversidades, geram um ente coletivo, um sujeito coletivo, com o poder de contagiar. Um poder ampliado, muito maior do que a mera somatória dos poderes de contágio que cada um desses corpos teriam se separados. A gente só se junta por causa disso! Se fossem corpos iguais, seria uma mera somatória, mas só fica mais forte porque são corpos diversos.

Claro que para um ato ter poder de contágio, a democracia interna é fundamental. Daí a importância da afinidade interna, sobre a qual eu já falei, para o sucesso da afinidade externa. E é necessária sim uma unidade. Unidade das diversidades. Como já disse o poeta Gonzaguinha, é dela que a diversidade nascerá! UH, TERERÊ!

Mas preciso dizer, por fim, mais uma coisa: que esse ente coletivo, chamado ato, não é uma garantia de sucesso. Como eu já disse, um ato não é uma garantia de contágio e de afinidade externa. Não existe ato perfeito. O ato de Cachoeiro não foi, e o ato de amanhã não será. Cada ato tem suas qualidades e seus defeitos, seus ganhos e suas perdas. Mesmo que o ato de amanhã seja um sucesso, ele terá defeitos. Mesmo que ele seja um fracasso, poderemos tirar aprendizados dele. Mas não devemos nos contentar com isso e deixar que ele seja qualquer coisa, é preciso haver um cuidado coletivo para que ele seja bem sucedido e nos dê um aprendizado mais potente. Isso faz parte da afinidade interna, e se cada uma e cada um de nós se sente co-responsável pelo sucesso do ato, ele tem mais chances de ser um sucesso! E que seja!

Franco, pode ser que o nome disso seja paixão, mas eu prefiro usar a palavra amor, pra definir isso que nos une na luta! É O AMOR QUE NOS LEVA ÀS RUAS! E com amor, voltaremos às ruas então!

"É GRAVE! É SÉRIO! É URGENTE!
DESPERTAR O PERIGO QUE HÁ NA GENTE!"

beijinhos de maracujá!

Um comentário:

  1. Zé ameu uma frase do seu texto to confeccionando uns cartazes pra manifestação que vai acontecer aqui em cuiaba, problemas se eu pegar sua pfrase pro cartaz?

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