Escrito originalmente com a intenção de publicação no Guest Post do site Geledés, no dia primeiro de dezembro de 2015, revisado em 6 de dezembro de 2015 para segunda tentativa de publicação no portal Geledés e agora publicado aqui diante da ausência de respostas e da urgência de divulgar seu conteúdo.
Fanzine é um rolê que não não podemos nos dar ao luxo de deixar de fazer!
A alma da juventude negra anticapitalista está em luto e em luta.
Não é apenas com o fuzilamento de 5 jovens (Roberto de Souza Penha, 16 anos, Carlos Eduardo da Silva de Souza, 16 anos, Cleiton Correa de Souza, 18 anos, Wilton Esteves Domingos Junior, 20 anos e Wesley Castro Rodrigues, 25 anos), que levaram 50 [depois que esse texto foi escrito, um laudo comprovou que foram, na verdade, cento e onze! SIM! 111] tiros de Policiais Militares na chacina de 28 de novembro de 2015 em Costa Barros, na cidade do Rio de Janeiro. Nossa luta é constante porque nosso extermínio é constante! Não se trata apenas de um desvio de caráter de alguns policiais, que têm coragem de praticar tal ação. É também e principalmente um desvio no caráter do sistema em que vivemos, ou seja, há uma cultura de violência baseada no consumismo e na defesa da propriedade acima da vida, e também numa indústria de guerra e lucros exorbitantes, uma guerra contra as drogas que alimenta a cultura de violência. A guerra na verdade é contra a juventude negra e pobre brasileira. É quem mais morre, é quem o Estado mata.
A alma da juventude negra anticapitalista está em luto e em luta.
A Polícia Militar que no Rio, em São Paulo e em todo o Brasil mata, é a mesma que ataca estudantes em luta no final de 2015 lá em SP, é a mesma que atacou professoras e professores em luta no início de 2015 no Paraná. Quando o capitalismo neoliberal ataca as escolas que temos, as universidades que temos, e os negros acabam sendo os mais prejudicados pelo fechamento de instituições de ensino, justamente no momento em que lutamos pra ter mais acesso à educação formal, é a nossa alma que é atacada. Mas ela não se satisfaz no extermínio indireto. Para a juventude negra do Brasil o assassinato precisa ser da alma e do corpo. A lama que mata um rio é constante na vida da negritude brasileira. Nossas almas e nossos corpos são alvo de uma cultura de violência racista, tão destrutiva para nós quanto a mineração para o planeta em que vivemos.
E quando uma irmã ou um irmão tomba nessa cultura de violência lucrativa, seu corpo é assassinado, mas também é assassinada a alma de toda pessoa negra que pensa no racismo brasileiro.
E nós, mesmo sofrendo, não paramos de pensar nisso, porque nossa consciência é uma questão de sobrevivência. Precisamos todos os dias estar conscientes do racismo, da condição negra, dos privilégios das pessoas brancas e da nossa opressão, porque sem isso não sabemos como acabar com essa cultura de violência racista que nos mata a alma não a conta-gotas, mas a talagadas!
Consciência negra no Brasil precisa ser consciência da cultura de violência, e isso é um sintoma de que o capitalismo brasileiro é uma doença muito grave.
A alma da juventude negra anticapitalista precisa ser o antídoto para a doença que nos mata todo dia, A consciência negra é esse instrumento, mas ela não pode ficar só na consciência, precisa ir à ação.
A alma da juventude negra anticapitalista está em luto e em luta.
Precisamos nos defender de um genocídio, e não é a cultura de violência que vai nos tirar dele. Precisamos de um tratado de paz, e isso nos impõe algumas tarefas.
Uma delas (nossa alma clama por isso) é o fim da estrutura assassina polícia militar. Toda polícia existe contra nós, povo negro, em todo lugar em que o racismo amadureceu capitalista, sobre a face da terra. Mas aceitar a Polícia Militar é dizer que sim, no Brasil está autorizado o extermínio da negritude.
A desmilitarização e o fim da polícia militar são um sinal pra humanidade de que estamos começando a mudar o sistema, a desmontar essa máquina de triturar corpos e almas de pessoas negras.
Outra tarefa para um tratado de paz é romper com a lógica da vingança intrínseca à cultura da violência. Ela é SEMPRE contra nós, e pratica racismo institucional, ou seja, aquele racismo oficial do Estado e das organizações da sociedade, praticado individual e grupalmente através da seletividade penal.
Pra quem não sabe, é quando a justiça trata pessoas negras de um jeito e brancas do outro. Como a PM é treinada pra prender, matar, abordar e constranger pessoas negras, com certa aparência física, com certas vestimentas, andando por certos bairros de maioria negra, ou ao menos expressando traços de cultura ligados à pretitude, também a Justiça é uma instituição estruturada para o julgamento diferenciado de pessoas consideradas do universo da branquitude ou da negritude. A simples cor da pele faz a pessoa identificar a outra como criminosa ou inocente, e isso lota as cadeias de corpos negros, assim como as balas da PM lotam corpos negros.
Uma terceira tarefa é legalizar e regular coletivamente a produção, distribuição e consumo de TODAS as drogas. Precisamos de um tratado de paz, mas as pessoas que pegam em armas nessa guerra apenas o fazem porque o comércio de psicoativos é ilegal. Manter a ilegalidade em nome da vida é uma hipocrisia. Os governantes racistas que dão lucro às indústrias de armas racistas, que calculam nossas almas em suas contabilidades financeiras e orçamentárias, utilizam de um discurso moral contra a liberdade para o uso de drogas, e em nome disso colocam os recursos do orçamento público em uma guerra racista.
Eu insisto muito no adjetivo racista porque ele é um elemento da consciência negra que intervém nas relações de poder raciais que, como negritude anticapitalista, queremos desmontar. Não é a toa que nos proíbem essa palavra, ainda mais do que o substantivo racismo. Elas (as palavras “racismo” e “racista”) têm capacidade de expor e denunciar o caráter assassino desse sistema e as necessidades de mudança. A negritude anticapitalista, ou seja, aquela que quer acabar com o racismo e também quer uma revolução contra o poder destruidor do capital, é a única força coletiva da sociedade que pode unificar os interesses necessários para o fim da cultura de violência, para esse tratado de paz, para a criação de outra sociabilidade que abandone a segregação, seja por raças ou classes. Denunciar o racismo é proibido assim como denunciar o capitalismo, nossas palavras são condenadas, nossa consciência negra é condenada, ainda mais nossa ação.
A alma da juventude negra anticapitalista está em luto e em luta.
Audre Lorde nos falava insistentemente da necessidade de escrutinar nossa vida de modo integral, ou seja, avaliar em todos os seus níveis todos os tipos de opressão. É preciso uma coerência inteira, uma totalidade de coerência, um escrutínio integral. O fim do capitalismo é o pacto perfeito para que se defina o fim da tolerância a todo tipo de opressão. Não aceitaremos mais! É nossa alma que grita. Audre Lorde, Franz Fanon, e tantas outras pessoas pretas tinham certeza de que a negritude anticapitalista é a coletividade capaz de acabar com o racismo.
A quarta tarefa do nosso tratado de paz, negritude anticapitalista, é disputar a cultura, a consciência, o sentido das palavras. É elencar as outras tantas tarefas que nos cabem. É mobilizar gente, divulgar boas ideias, construir redes sólidas (ou mesmo fluidas e temporárias) de luta vigilante contra o racismo. Precisamos educar a nós mesmas e mesmos, que não somos o lixo que nos ensinaram, que nossa vida vale, que os nossos danos psicológicos não são naturais, enfim, desconstruir o embranquecimento que sofremos e tudo que o racismo tatuou em nós desde que nascemos. Precisamos educar também as pessoas brancas (não podemos fugir dessa tarefa, prometo que falo disso em outro texto em breve), desconstruir nelas o racismo deve ser dedicação delas, mas isso jamais acontecerá sem protagonismo nosso. Precisamos sim intervir na mentalidade branca. É questão de sobrevivência.
Denunciar o papel assassino e racista do Estado e do capital, em todas as suas nuances, e como isso se sustenta em cada comportamento de quem reproduz o racismo (vivenciando privilégios a partir disso ou não). Educar as pessoas brancas a parar de produzir o racismo e as negras a parar de reproduzi-lo, é a principal função dessa ARMA que é a consciência negra. Esse é o caminho através do qual a desmilitarização da PM, a legalização das drogas e a deslegitimação do punitivismo vingativo podem ser difundidas.
A consciência negra é a arma para a negritude anticapitalista acabar com o racismo, contribuir para uma revolução que acabe com o capital e dê outro sentido para as nossas vidas, sem a cultura da violência. A consciência negra é um instrumento para um novo pacto, que ponha fim à hegemonia da branquitude, como um universo de privilégios.
É nossa alma que está em jogo. Eu adoeço cada vez que uma nova chacina acontece. Perder vizinhos e familiares, ou pessoas de outros estados, não é a alegria de ter sido o sobrevivente. É cruel que eu precise comemorar por não ter sido assassinado hoje.
A alma da juventude negra anticapitalista está em luto e em luta.
Constante.
Vigilante.
Racistas, não passarão!
A juventude negra vai fazer revolução!
beijinhos de maracujá!