Não nos conhecíamos. Eu tinha alguma coisa com o olhar dela, que me sugava como dizem que um buraco negro suga todo tipo de coisa que ousa dar bandeira em seu raio de alcance. Mas ela não me olhava, o olhar dela, ali displicentemente largado, me dominou sem me prometer casa, sem me acolher, sem sequer buscar por mim.
Ela tomava um café, e eu bebia um suco e mordiscava alguma coisa que eu não me recordo bem. O café dela era quente, e ela parecia estar se aquecendo na fumaça que subia da bebida. Eu ainda assim fazia questão do suco gelado, e fiquei pensando nas diferenças de temperatura. Sua bebida era quente como seu olhar, será que meu olhar era gelado?
É muito difícil saber quem eu sou. Eu consigo fazer mapa dos outros, ler os outros, entender qual é a pegada de cada uma e de cada um, em cada situação, e no entanto, nunca sei o que estou sendo, porque sempre estou dentro de mim. Ao menos supostamente.
Eis que naquele momento eu me perguntava como eu estava aparecendo para o mundo ali, e como eu estava aparecendo para ela. Me parecia indiferente a mim, não de forma arrogante, simplesmente nada em mim parecia ter chamado atenção dela. Eu, que sou bom em ler pessoas, li nela um simples não me ler. Queria que meus olhos fossem capazes de capturar os dela.
Era uma moça linda, de bom gosto com roupas, uma estravagância leve, cabelo curto e pele bronzeada, mas acho que pode já ter sido alva. Mas o que mais me chamava atenção nela, sem sombra de dúvidas, era o ar de inteligência divertida. Acho que estou caçando essa tal dessa inteligência divertida por todos os cantos nos últimos dez anos. Ela existia há um tempo atrás, eu me lembro! Onde foi parar? Abandonou as noites de Vitória, que se comformaram e vão se conformando, cada vez mais paradas e limpas? Se escondeu pelos cantos, e continua fazendo o seu serviço na madrugada, mas desta vez sem o glamour dos ares intelectuais, artísticos, universitários, eruditos, como se a inteligência oficial da cidade tivesse encontrado pra si outra missão, provavelmente muito mais pedante do que a missão de ser divertida? Onde estão aquelas moças que sorriam pra gente quando viam que a gente trazia uma boa energia nos ombros? Que diziam ois simpáticos nas ruas e ladeiras. escadarias e beira-mares, sem a certeza errada de que todo mundo que sorri na rua está supondo que a outra pessoa quer sexo? Que sentavam nos bares pra papo bobo e largado, e sempre planejavam bons projetos que não saiam do papel porque nem entravam muito nele, indo direto das mesas para a ação? Que comentavam mangues, e os habitavam, comentavam sons e boas montagens e ótimas mostras do circuito, e inventavam circuitos pra mais gente comentar? Hoje as pessoas carregam nos ombros uma responsabilidade triste, de uma inteligência tarefeira ou mandona, e eu tenho saudades de quando nas ruas, me enamorava das inteligências divertidas, que nem mandam nem obedecem, mas compõem.
Acho que o que eu mais gostava nela, é que era diferente de mim no essencial: no medo. Alguém com aquele olhar não poderia ter medo, e enquanto ela tomava seu café desinteressado, e eu tomava meu suco interessadíssimo, sentia que ela teria coragem de se assumir interessadíssima, se o estivesse. O meu dilema é, fazê-lo, como me pareceu que ela faria, ou tentar discretamente roubar seu interesse, para que ela mesma o fizesse? E o que eu mais gostava nela depois disso, é que ela era igual a mim no que eu mais precisava de gente igual: não era alguém que estaria aberta a crescer comigo, e me dar a honra de ser uma referência; ao contrário disso, tinha referências pra trocar comigo tanto quanto eu tinha pra trocar com ela. Não trocamos nenhuma palavra, e concretamente, nem nenhum olhar, mas eu tinha absoluta certeza disso.
A qualquer momento chegaria uma pessoa qualquer, rapaz ou moça, e se sentaria junto com ela. Ela sairía do silêncio do café e teria muito a dizer, e muito a ouvir. Cada segundo me parecia uma eternidade, e eu pensei que talvez pudesse trabalhar esse tempo distorcido.
Me levantei em câmera lenta. Cada passo durava uns vinte minutos, e eu passava esses vinte minutos calculando cada movimento do recinto, nas outras mesas, no balcão, nas pessoas que caminhavam e nas que estavam paradas lá fora. E como foram muitos passos, eu tive tempo de acompanhar, numa velocidade que me permitia detalhes, a história da minha coragem se engendrando: "vizinha, pode me emprestar um pouco de acúcar?", "você sabe qual ônibus eu pego pra chegar no shopping?", "o que rolou na última aula, teve algo de especial:", "de onde veio todo esse calor, será que o mundo vai mesmo acabar?".
"Seu olhar é forte, firme! Me dá medo!", eu falei. Ela achou estranho, claro! Virou a cabeça do lado e me olhou de cima abaixo, enquanto construía um sorriso de simpatia: "Se isso é um elogio, obrigada! E o seu olhar, por sua vez, tem Ternura... Me chamo Paloma, e você?". Eu parecia saber exatamente o que dizer, até que as palavras saíssem da minha boca, aí eu via claramente que estava fazendo tudo errado, e dizendo tudo inconvenientemente, até ela responder ao que eu dizia, como se eu tivesse dito exatamente o que tinha a dizer. Conversamos sobre quadrinhos e sobre constelações, sobre polícia e sobre coisas ilícitas. Conversamos sobre coragem e sobre coisas novas a se fazer na vida. Conversamos sobre vontades da carne e do corpo, conversamos sobre pecado e sexo, sobre sexo sem fé em pecado, e conversamos sobre o prazer de viver a liberdade. Foi ficando claro que a gente estava falando da gente e a gente não percebeu quando foi que começamos a falar abertamente de experimentar coisas novas que porventura alguém de nós dois tivesse a apresentar ao outro. Não marcamos outro dia, fomos para a casa dela.
"Cada pessoa cuida da sua vida", dizia ela, "e a gente pode ser feliz com gente falando mal da gente! As pessoas não vão deixar de falar porque a gente entregou a vida à falsidade que todo mundo tá moralmente querendo viver". Pra mim fazia sentido, mas eu não entendia como alguém conseguia, na prática, ser tão livre. São tempos tão tenebrosos... E ela dizia "não dá pra esperar que a liberdade seja só depois, tem que mudar o mundo, mas não achar que vai vir um mundo novo igual reino dos céus, então eu não vou deixar de meter com quem eu quiser porque agora ainda tá triste e o capitalismo é mal. Por que é que a gente vai ficar fazendo as coisas do jeito que as pessoas ao nosso redor querem? Que elas aprendam a respeitar o que cada um de nós quer pra si. Cada pessoa cuida da sua vida." Eu concordei, fui convencido.
Eu não sei quando nos veremos de novo. Ela liga, eu ligo, quem liga? Gente assim é tão diferente. Está faltando liberdade encarnada por aí, e foi bom ter um bom encontro com alguém assim. Vou tentar ficar assim também, vai que mais gente por aí gosta de me encontrar. Alguém ainda curte o prazer de pisar no chão, nessa cidade?
beijinhos de maracujá!