Pretendo fazer uma pequena digressão em bainstorm sobre um problema que tem me atormentado, e sobre alguns problemas afins. Meu problema principal aqui neste texto é se convém ou não a revolucionários querer tomar os rumos das políticas sociais, é um problema bem geral, como podem ver!
Este texto remete a outro, que pode ser encontrado no link: http://artificiosocialista.blogspot.com.br/2014/04/primeiro-rascunho-resumidissimo-de.html, tratando de assuntos referentes ao terceiro, quarto e quinto temas listados, em especial o quarto: "a forma como o Estado se organiza (o tema da burocracia), as múltiplas formas como as classes sociais se portam diante das políticas sobre drogas aplicadas por este estado, e as formas de a classe trabalhadora conferir rumo revolucionário para tais políticas". Não me aprofundarei muito sobre o quinto tema, ou seja, qual é o rumo revolucionário, mas sobre as formas de a classe trabalhadora conferir rumo revolucionário para as políticas sociais (sobre drogas ou quaisquer outras), eu tenho uma pré-tese a defender: a de que existem dois patamares de disputa dos rumos das coisas públicas e da vida social, um patamar reformista (democracia formal, semi-consentida e semi-conquistada) e um patamar revolucionário (democracia real e substantiva), e de que a disputa desses rumos, ou seja, a gestão democrática das coisas públicas e da vida social, dentro do sistema do capital, hoje, só pode se dar no patamar reformista, mas isso não implica nem que devamos abandonar tal disputa, o que seria uma postura muito mais omissa e derrotista do que revolucionária, nem nos entregar completamente a essa disputa reformista, o que tende à cooptação, à institucionalização e à neutralização do nosso potencial de luta revolucionária. Minha pré-tese é a de que devemos circunscrever o patamar revolucionário como horizonte no patamar reformista.
O patamar revolucionário de gestão democrática das coisas públicas e da vida social, tem a ver com o quinto tema do rascunho linkado acima. É algo que não temos no Sistema do Capital, e que nele não temos condições de ter. Em um patamar revolucionário de democracia, que deve ser real e substantiva, ao invés de meramente formal e institucionalizada, as pessoas devem ter direito de decidir, e essas decisões devem ter poder de mudança real sobre a realidade vivida. Todos os processos produtivos e reprodutivos precisam ser decididos por quem os executa. A tarefa de administrar as tarefas executadas precisa ser coletivizada, ou seja, precisamos acabar com a separação entre pessoas que administram e não executam, e pessoas que executam e não administram. Ironicamente, na nossa sociedade, no atual patamar do Sistema do Capital, quem administra sem executar é chamado entre outros nomes de "executivo", e quem executa sem administrar é chamado, entre outros nomes, de "colaborador", como se o fazer de fato fosse uma mera colaboração. Essa separação entre quem decide e quem executa, além de nociva para o futuro e presente da humanidade, também é a tecnologia racional para garantir que os interesses da burguesia sejam a tônica das tarefas executadas. os funcionários executivos têm salários mais altos do que os operários, e administram de acordo com ordens que vêm de cima. Num patamar revolucionário de gestão da vida social e das coisas públicas, as decisões serão "de baixo para cima", já que os operários serão de fato os proprietários das coisas públicas e da vida social, e todo processo produtivo será a serviço de quem trabalha e de quem usa o fruto deste trabalho, seja esse fruto da natureza de bens ou de serviços. A gestão de cada processo particular da vida social, e de cada coisa pública em particular, terá como principais protagonistas aqueles que estão diretamente ligados com aquilo, ou seja, os trabalhadores daquele processo e da produção/reprodução daquela coisa. Mas é preciso que cada grupo de trabalhadores e usuários esteja em rede com todos os demais grupos, conectando toda a sociedade, neste patamar revolucionário. Essa rede deve ter formas criativas, democráticas e abertas de circulação das informações, e cada grupo particular deve decidir não apenas questões locais, mas também globais, passando por várias esferas (serviço, bairro, município, microrregião, estado, região, país, continente e inclusive a nível internacional). Questões relativas a todas essas esferas devem estar em pauta em cada cantinho do mundo, e a síntese disso deve servir como cenário, em constante reatualização, de todas as decisões sobre os processos particulares da vida social e sobre todas as coisas públicas particulares. Cada local de estudo, trabalho, lazer, promoção de saúde, habitação, segurança, enfim, todos os âmbitos da vida coletiva devem estar (respeitando a individualidade, sem cair no individualismo) sob gestão dessa rede democrática, para que alcancemos um patamar revolucionário da gestão da vida social e das coisas públicas.
Mas o que vivemos hoje é o patamar reformista, ou seja, há um grupo muito restrito de seres humanos que decidem os rumos da humanidade, e que concedem em pirâmide descendente poderes deliberativos para outros seres humanos, apenas quando isso facilita a manutenção de seu poder e de seus privilégios. Nessa lógica, o ideal seria que os setores empresariais, latifundiários e afins, pudessem decidir todas as coisas, sem conceder poder decisório algum a ninguém que não fosse dessas elites, mas os conflitos internos nessas elites e, principalmente, os conflitos entre estas elites e os setores explorados, geram tensões sociais que colocam o status quo em risco. Isso pede racionalidade na gestão da vida social e das coisas públicas, pede inclusive que tornem-se públicas algumas coisas que as elites gostariam de manter privatizadas (mesmo que aplicando modelos privatizantes sobre essas coisas públicas). Em outras palavas, as lutas de alguns setores coletivamente organizados ou não dessa parcela explorada e mais oprimida da humanidade, contra os privilégios dessas elites, e pelo direito de participar da gestão da vida social e das coisas públicas, força as elites a concederem parcialmente poderes para representantes desta parcela, ou para "executivos" que gerenciem a democracia formal no lugar dessa parcela explorada. Isso quer dizer que a democracia formal é em parte concedida pelas elites dirigentes, mas não dá pra afirmar apenas que ela é consentida, porque esse consentimento é fruto de lutas por conquistas. Porém não podemos dizer também que ela é apenas conquistada, o que seria uma visão romantizada da democracia formal, já que ela é conquistada, mas semi-consentida, ou seja, só conseguimos conquistar democracia, dentro do sistema do capital, nos marcos do que é aceitável para que as elites não percam o domínio do sistema tal como está.
E quais são esses marcos. Já tivemos algumas pistas: é uma democracia fundada na lógica da representatividade, e deve ser sempre o mais representativa possível, distanciando as pessoas na participação direta dos processos decisórios. Se possível, inclusive, as elites desejariam que essa democracia fosse meramente consultiva, e essa é uma segunda tendência da democracia consentida. Outra tendência é a legitimar representantes, ou grupos representativos, apenas quando eles não se insurgem contra o status quo. Quem topa participar da democracia formal dentro da arena limitada, dentro das regras do jogo que favorece a vitória dos interesses das elites nesta democracia, vai ser tratado como um democrático e respeitável perdedor. Quem topa ser cooptado ou neutralizado pela institucionalidade é mais bem vindo ainda. Mas qualquer pessoa ou principalmente, qualquer movimento coletivamente organizado que se insurja contra as regras limitantes da democracia formal, e busquem radicalidade democrática, rompendo por exemplo com a tendência à representatividade ao invés da opinião plural, e com a tendência à consultividade ao invés do poder deliberativo das massas, é criminalizado, reprimido, até mesmo exterminado. Para as elites sai caro reprimir toda forma de questionamento, e causa muita instabilidade no status quo, por isso a preferência por neutralizar e/ou cooptar opiniões distintas, mas a criminalização e a violência são dispositivos dos quais sempre se pode lançar mão. Por fim, outra característica que no momento julgo importante apresentar, quando tratamos da democracia formal, do patamar reformista, é que as coisas tendem a ser privadas, o privado é sagrado, as coisas públicas tendem, cada vez mais, a serem submetidas a algum dos vários modelos privatizantes que as tecnologias racionais de gestão têm criado, para que a lógica da propriedade privada esteja regendo a vida social. Disputar os rumos da vida social e das coisas públicas dentro da arena da democracia formal, burguesa, semi-consentida/semi-conquistada, é necessariamente uma disputa reformista.
Então porque revolucionárias e revolucionários se meteriam numa disputa desta natureza, de patamar reformista? Em primeiro lugar porque as condições objetivas do atual sistema não nos permitem o patamar revolucionário de gestão hoje. Ser revolucionário não é exercer hoje o patamar revolucionário, deixando de exercer o patamar reformista, porque isso é objetivamente impossível. A democracia que existe é a formal. A democracia real e substantiva ainda está para ser criada. A pré-tese que defendo aqui, é a de que o bojo da democracia formal, do patamar reformista de gestão, é contraditório, e parte do exercício e da experimentação do patamar revolucionário de gestão, pode acontecer neste terreno contraditório. Mas há um dispositivo essencial para que a outra parte desse exercício e dessa experimentação ocorra, um dispositivo que é justamente um dos principais objetos de criminalização e cooptação por parte do sistema do capital. Estou falando dos movimentos sociais. Precisamos exercitar a democracia real, o mais direta e capilarizada possível, nos movimentos sociais, para que as pessoas possam vivenciar a grande política, a nova cultura política, dentro dos movimentos, e vê-la como diferente da pequena e velha política, essa da delegação de poderes que retira poderes da maioria. Os movimentos sociais precisam ser espaços de exercício e experimentação do poder popular. Esses movimentos sociais devem se organizar para disputar os rumos das políticas públicas, para disputar os rumos das coisas públicas e da vida social. Espaços de democracia formal como conselhos e conferências, precisam ser ocupados por movimentos sociais que superem a burocratização hoje vigente na maioria dos movimentos sociais tradicionais, e que permitam às pessoas experimentar formas eficazes e substantivas de democracia de massas. Ou seja, as massas precisam ser não apenas setores levados por movimentos sociais que formulam, as massas precisam ser as formuladoras das posições dos movimentos sociais. Os representantes desses movimentos sociais na democracia formal, precisam pôr em cheque as regras do jogo dentro dos espaços como conselhos e conferências, ou mesmo espaços do legislativo, executivo e até do judiciário. Essa é a tese da circunscrição do patamar revolucionário como horizonte no patamar reformista de gestão da vida social e das coisas públicas.
Claro que todas e todos contribuímos para que a realidade social esteja como está, claro que todas e todos somos, em algum grau, autoras e autores coletivos deste cenário, mas o nível de efetividade sobre a realidade, por parte de alguns atores e de algumas instâncias deliberativas é inegável. O MPOG tem mais poder sobre o regime de trabalho dos professores universitários do que o ANDES e mais poder sobre o regime de trabalho dos servidores técnico-administrativos das universidades do que a FASUBRA, as decisões da Miriam Belchior têm mais efeito objetivo sobre a vida das pessoas nas universidades do que as de um professor universitário ou servidor técnico-administrativo qualquer. É importante ressaltar isso. O presidente da FIFA tem mais poder decisório no atual funcionamento metabólico do sistema do capital do que uma moradora de uma favela carioca. Não dá pra gente igualar os poderes decisórios de pessoas que estão em patamares diferentes do organograma geral da democracia formal, na nossa sociedade. São diferenças objetivas, e subjetivá-las não ajuda em nada na análise da realidade vivida, nem em sua transformação. Muito pelo contrário. Ledir Porto e um popular de rua da Ilha do Príncipe não têm opiniões de peso igual sobre a atenção à saúde de usuários de drogas no estado do Espírito Santo hoje. Alguém discute esse fato?
Até aqui o debate foi muito geral, inclusive dando muito pouca atenção ao terceiro tema listado naquele rascunho cujo link já coloquei lá no início deste texto. Mas quero encerrar tratando um pouquinho deste assunto: quais seriam os componentes da direção que revolucionárias e revolucionários tentariam dar à política sobre drogas no atual patamar reformista da vida humana no planeta terra, mais especificamente na realidade capixaba e da Grande Vitória? Começo por distinguir dois projetos. A perspectiva da Guerra às Drogas com as suas várias nuances, unificadas pela moralização do uso de drogas, pelo equívoco de tratar todos os usos de drogas como usos problemáticos, pelo equívoco de remeter os danos do uso de drogas à droga em si, como se o proibicionismo não potencializasse esses danos, e como se a lógica compulsiva, consumista, individualista da nossa sociedade capitalista não ajudassem a potencializar mais ainda os danos das drogas. A perspectiva da Guerra às Drogas determina que se gasta mais dinheiro com polícia e armas do que com uma Rede de Atenção Psicossocial, e que o dinheiro investido na questão da saúde de quem usa drogas seja mais voltado para comunidades terapêuticas privadas/religiosas (que dão voto) do que para CAPS AD, programas de saúde mental AD em unidades básicas de saúde nos bairros, equipes de Consultório na Rua, programas de Redução de Danos, etc. O segundo projeto está sintetizado justamente nisso que o projeto anterior se nega a investir. Mas além da Rede de Atenção Psicossocial, com Consultório na Rua, Redução de Danos e CAPS AD, esse segundo projeto é focado na educação de qualidade, na aposta de que usuários de drogas sofrem muito menos danos das drogas quando vivem em comunidade, sem sofrerem preconceitos pelo seu uso, tendo condições de trabalho e habitação, acesso a formas de uso menos danosas, sem proibicionismo, sem perseguição, violência e extermínio, sem a obrigatoriedade da abstinência como tratamento. A abstinência não é um inimigo das revolucionárias e dos revolucionários, vejamos bem que essa diferença é sutil, nossa inimiga é a obrigatoriedade da abstinência. Assim como o tratamento em uso deve ser um direito, o tratamento em abstinência também. Outra inimiga nossa é a produção do desejo de internação, quando se supervaloriza o poder da internação no enfrentamento ao uso de drogas. A internação compulsória e as comunidades terapêuticas são também uma dupla de inimigas. Há outros elementos no marco da elaboração de um projeto sobre a questão das drogas que se contraponha ao projeto assassino e lucrativo da Guerra ás Drogas. Disputar este rumo no marco de um patamar reformista da gestão da vida social e das coisas públicas, inscrevendo aí um patamar revolucionário, tendo como paradigma o da redução de danos, é a síntese da tese que quero desenvolver nesta monografia e em trabalhos futuros.
As ideias ainda estão muito confusas aqui, mas já estiveram mais. O esforço da escrita me ajuda a elaborar melhor essas ideias, mas também me dá oportunidades de receber ecos de como soam essas idéias, quando expostas ao oxigêncio, por isso peço muito que as pessoas que por ventura vierem a ler este texto possam opinar, fazer críticas, dar dicas, comentar onde as ideias estão funcionando melhor, para que eu possa aperfeiçoar esses escritos.
Para quem conferiu o primeiro rascunho da monografia, cujo link já citei várias vezes que está lá no início deste texto, foi possível perceber que alguns debates não foram tratados aqui. Terei outras oportunidades para falar melhor sobre a temática das drogas e sobre a temática da avaliação das políticas públicas e sociais, assim como para voltar aos temas aqui tratados. Muito obrigado por ter acompanhado esse texto até aqui, e espero que consigamos escapar das armadilhas da cooptação, da institucionalização e da burocratização. A construção do poder popular é uma tarefa da qual defende o futuro da humanidade! Essa é uma pequena gota de contribuição para essa nossa árdua tarefa!
beijinhos de maracujá!